Uma das primeiras partidas de futebol feminino do país aconteceu no
Rio Grande do Norte, ainda em 1920. Em lados opostos estavam mulheres
que participaram da história do país.
Por Ingrid Furtado com supervisão de Filipo Cunha.
Não se sabe que dia, nem precisamente a que horas, mas no início de
1920, após meses de treinamento, uma partida de futebol entre mulheres
potiguares entrou para a história como uma das primeiras do país.
O local da partida foi a Fazenda Senegal em Natal/RN, onde hoje se
localiza o 16º Batalhão de Infantaria Motorizada (no bairro do Tirol).
Na época, o local era residência do coronel Joaquim Manoel Teixeira de
Moura. No campo de futebol da propriedade se enfrentaram dois times
com 11 mulheres cada: ABC F.C. e Centro Sportivo Natalense.
O jogo foi tão esperado pelas esportistas que mereceu até registro
fotográfico. A foto mostra como elas entraram em campo, detalhes dos
uniformes usados na época, e como os homens da época se vestiam
– alguns acompanharam, um deles era treinador do Centro Sportivo
Natalense.
Partida de futebol entre mulheres potiguares entrou para a
história como uma das primeiras do país.
Foto: Instituto Tavares de Lyra.
As mulheres começaram a jogar logo no início do esporte no Estado. “O
futebol era um meio de sociabilidade muito utilizado na época. Foi
trazido de Londres para Natal pelos filhos do comerciante Fabrício
Pedroza que foram estudar na Europa. As famílias eram entrelaçadas, e
as mulheres se interessam pelo esporte, e passam a praticá-lo em um
campo na Fazenda Senegal”, revela o memorialista Anderson Tavares de
Lyra.
Capa da revista Vida Sportiva.
Foto: Instituto Tavares de Lyra.
A partida reuniu a alta sociedade econômica e intelectual do Estado.
Segundo o pesquisador Anderson Tavares de Lyra estavam em campo:
"Jandira Café, Nanita Maranhão, Dulce Moura, Aline Moreira Brandão,
Maria de Lourdes de Moura Brito, Mabel e Isaura Tavares, Maria
Antonieta Chaves, Alice Tavares de Lyra, Maria Amélia Medeiros,
Cândida Palma, Belezita Moura", além das filhas e sobrinhas do Cel
Joaquim de Moura.
Um olhar mais atento na lista de jogadores é possível encontrar
sobrenomes importantes como "Tavares de Lyra". Os registros
fotográficos desta partida pertencem ao Instituto Tavares de Lyra,
que Anderson preside hoje. "As fotografias chegaram às minhas mãos
pela minha bisavó Sophia Augusta Tavares de Lyra que, por sua vez,
herdou o álbum de fotografias de sua tia Alice Tavares de Lyra, que
está nas fotografias".
Estas mesmas fotos foram publicadas pela revista Vida Sportiva do
Rio de Janeiro, em março de 1920. Na capa estava parte do time
feminino do ABC. Porém dois nomes daquela partida tiveram destaque
nacional, não no futebol, mas na política.
Voto feminino X primeira-dama do Regime Militar
No lado do ABC, estava uma professora de 30 anos de idade chamada
Celina Guimarães Viana. No time adversário, estava a jovem de 17
anos, Jandira Carvalho de Oliveira, que viria a ser conhecida como
Jandira Café, primeira-dama do Brasil no governo Café Filho. Ah,
Café Filho está nas fotos, era o treinador e grande incentivador do
time feminino do Centro Sportivo Natalense.
Esta partida foi tema de publicação acadêmica da pesquisadora do
futebol Aira Bonfim. Ela destacou a importância da partida e do
protagonismo dessas mulheres em promover o futebol. "Eu,
pessoalmente, acho espetacular o protagonismo feminino no Rio Grande
do Norte!", afirmou Aira Bonfim.
Jandira Carvalho de Oliveira Café
Jandira Carvalho de Oliveira.
Foto: Reprodução.
Nascida em 17 de setembro de 1903, Jandira era a filha de Ovídio Fernandes
de Oliveira e Joana Hercília Teixeira de Carvalho. Em 1919, ela jogava
futebol feminino como volante do time do Centro Sportivo Natalense quando
conheceu seu futuro marido João Fernandes Campos Café Filho.
João era treinador do time em que Jandira jogava. Atleta e apaixonado por
futebol, foi ele quem procurou o Centro Sportivo em 1919 para sugerir a
criação de um time de futebol feminino.
Em 1920, João abandonou o esporte para começar a trabalhar com jornalismo
e Jandira o acompanhou. Os dois ex-atletas se casaram em 1931. De 1951 até
1954, ela foi a "segunda-dama" do Brasil enquanto o marido assumia o cargo
de vice-presidente de Getúlio Vargas.
Curiosamente, foi Getúlio que em 1941 proibiu as mulheres de jogarem
futebol – esporte que uniu o Vice-presidente e a "segunda-dama".
"[...]as buscas por Jandira Café foram tão ardorosas quanto pelas demais
primeiras-damas, ou até mais, pois não existem trabalhos acadêmicos que
discutam sua atuação [...]"
"[...] a atuação de Jandira Café pode ser associada mais às estratégias do
governo de seu esposo, sem desvios de percurso que possam ter permitido a
constituição de algum capital político."
"Fato curioso é Jandira nunca ser mencionada enquanto primeira-dama, e sim
como “senhora” ou “esposa” do presidente. Isso pôde ser constatado em
todas as notícias em que o nome de Jandira foi mencionado."
Ainda em sua tese, a pesquisadora acrescenta: "vale lembrar que Jandira
Café não foi preparada para ser primeira-dama, tampouco para o posto
ocupado por ela. No entanto, as circunstâncias jogaram essa
responsabilidade em suas mãos e, em meio às divergências políticas que
marcaram a história brasileira após 1954, coube a ela ocupar uma posição
que já carregava pesadas prerrogativas políticas".
Apesar de ter tido um papel político reduzido se comparado à Darcy Vargas,
primeira-dama que a antecedeu, Jandira foi descrita no livro Presidentes
do Brasil como "muito importante na existência e na carreira de Café
Filho".
Celina Guimarães Viana
Celina Guimarães Viana.
Foto: Reprodução.
Nascida em 15 de novembro de 1890 em Natal, Celina era a filha de José
Eustáquio de Amorim Guimarães e Eliza de Amorim Guimarães.Cursou a
Escola Normal e se casou com Eliseu de Oliveira Viana em 1911. O casal
morou em Mossoró em 1914, onde Celina atuou como professora infantil e
Eliseu como diretor da escola.
Entre 1917 e 1919 atuou como juíza de futebol pela Liga Desportiva
Mossoroense. Costumava apitar partidas masculinas entre os bairros da
cidade de Mossoró/RN. A partida apitada por Celina foi registrada no
livro "O futebol da Gente" escrito por Lauro da Escócia de 1982.
O livro diz que Celina Guimarães correu de saia pelo campo, e que tinha
pulso firme, chegou a marcar um pênalti para cada time. E apesar de não
ter reconhecimento oficial, deve ter sido a primeira mulher a ser juíza
em jogos de futebol.
Celina incorporava o esporte na sala de aula, traduzindo as regras da
atividade importada da Inglaterra para seus alunos. Ela também era
progressiva em relação aos padrões da época, por abolir castigos físicos
na sua sala.
Em 1927, o Rio Grande do Norte foi o primeiro Estado que, ao regular o
"Serviço Eleitoral no Estado", estabeleceu que não haveria mais
"distinção de sexo" para o exercício do sufrágio. Segundo o escritor
João Batista Cascudo Rodrigues, o histórico despacho foi vazado nestes
termos:
"Tendo a requerente satisfeito as exigências da lei para ser
eleitora, mando que inclua-se nas listas de eleitores. Mossoró, 25
de novembro de 1927."
Essa mesma lei permitiu que Alzira Soriano, também potiguar, fosse a
primeira prefeita eleita do país.
Celina entrou para a história como a primeira eleitora mulher registrada
a votar no país, depois de muitas outras tentarem o registro e receberem
negativas.
Apesar do marco importante, Celina era considerada da elite, trabalhava
fora de casa e tinha um status de professora universitária. Após votar,
ela escreveu ao presidente do Senado pedindo para que o direito do voto
fosse estendido a todas as mulheres.
A bem da verdade, o voto de Celina não contou. O Poder Verificação do
Senado, julgou que o Rio Grande do Norte não tinha o direito de
autorizar o voto feminino. Este direito para as mulheres só começou a
valer em 1932.
Resultado da partida
A partida terminou em 12 a 0 para o Centro Sportivo Natalense, time de
Jandira Café, sobre o ABC de Celina Guimarães. Mas como deu para perceber,
nesta altura, o que menos importa é a vitória esportiva. Elas marcaram a
história naquele dia, e continuaram a marcar anos depois.
Resultado da partida.
Foto: Instituto Tavares de Lyra.