A efetiva democracia não teria como pressuposto uma prévia discussão de ideias e escolhas feitas pelos filiados dos partidos políticos?
Como disse no texto anterior dessa série, o nosso maior problema ainda é a falta de democracia interna e, por conseguinte, o privilégio para alguns escolhidos, de forma arbitrária, em detrimento da vontade da maioria.
Em verdade, acredito que muitas decisões tomadas no seio dos partidos políticos brasileiros sequer são submetidas ao crivo da maioria, o que potencializa a desigualdade de todo o pleito, prevalecendo na prática a vontade de poucos, na maioria das vezes, dissociada do interesse público e aprisionada pela busca insana de satisfações pessoais da maioria de nossos políticos, dentro do que venho chamando de estrutura do poder pelo poder e na qual estrutura a nossa politicagem, que infelizmente se encontra muito longe da política de serviência ao bem comum.
Quando interpretamos as novidades das minirreformas que remodelaram o artigo 36A ora comentado, na linha de se prestigiar os partidos políticos, fizemos porque não há como conceber o individualismo, nesse momento, inaugural do processo, sob pena de desvirtuamento do próprio sistema, como bem reconheceu o TSE em debate quanto à consulta sobre o tema em sua primeira decisão (Consulta do MPE sobre propaganda eleitoral antecipada não foi conhecida pelo TSE).
Destarte, pensamos que todos os atos, nesse momento, que procuram individualizar uma candidatura que não existe juridicamente pode vir a ser considerado ilegal, pois mesmo, também, não compreendendo que são taxativas as situações que se considerem lícitas nesse momento, outras situações podem ser tidas como ilícitas, ou seja, caso a caso vai se analisar até que ponto o eventual candidato se encontra, por exemplo, fazendo propaganda irregular ou promoção pessoal, já que esta última é admitida pela novel legislação.
Dai porque o melhor ao pretenso candidato é elevar as ideias das agremiações das quais fazem parte, conquistando o eleitor, desde já, pela qualidade das discussões e propostas partidárias, deixando para o momento oportuno a apresentação das ideias pessoais, por óbvio, somente após escolhido na convenção partidária e depois do marco inicial previsto na lei.
Fica patente que há uma linha tênue nessa distinção e somente caso a caso se pode dizer se se trata de promoção pessoal ou propaganda irregular!
Entretanto, as pessoas e em especial os pré-candidatos querem respostas prontas e acabadas se dadas condutas são válidas ou não a partir das aberturas desse novo sistema e nos parece ser impossível se afirmar isso.
Por outro lado, é indiscutível que não se pode cercear o exercício regular da cidadania ou restringir a atuação do agente político no exercício de um mandato que se tenha adquirido no pleito anterior, logo, a lei e a resolução específica para o pleito de 2020 asseguram as prerrogativas dos parlamentares em levar à população o conhecimento de suas atividades, atividade esta que se configura muito mais em um dever.
Para contextualizar, apresentamos, mais uma vez, o texto normativo:
Art. 36-A. Não configuram propaganda eleitoral antecipada, desde que não envolvam pedido explícito de voto, a menção à pretensa candidatura, a exaltação das qualidades pessoais dos pré-candidatos e os seguintes atos, que poderão ter cobertura dos meios de comunicação social, inclusive via internet: (Redação dada pela Lei nº 13.165, de 2015)
(…)
IV – a divulgação de atos de parlamentares e debates legislativos, desde que não se faça pedido de votos; (Redação dada pela Lei nº 12.891, de 2013)
Não se pode negar que os detentores de mandato levam vantagem em termos de exposição de seus nomes em relação aos que não o tem. Contudo, entendo que a previsão legal é natural e encontra amparo no poder que o povo deu aos parlamentares no pleito passado e isso não pode, em nenhum momento, ser desconsiderado.
É razoável que os parlamentares renunciem aos seus mandatos?
Penso que não, muito mais dentro de um sistema em que os detentores de cargos no executivo podem se candidatar sem terem que se afastar de suas atividades, o que causa aqui no Brasil, muitas ilicitudes, já que o abuso de poder político nessa seara parece ser uma tônica. Nessa temática, indicamos uma polêmica muito grande, registrando, infelizmente, que a posição formal vem prevalecendo em outro sentido, ambas trazidas aqui para o debate (A impossibilidade de reeleição no Executivo de quem já concorreu uma vez no exercício do cargo e Eleições suplementares e reeleição: presidente da câmara eleito pode ser reeleito).
Portanto, muito mais que um direito de eventuais candidatos à reeleição, é um dever dos parlamentares divulgarem suas atividades, prestando contas de seus atos para a população e, por óbvio, não podem se exacerbarem nessa ação, comedindo-se quanto ao contato com seu possível eleitor em relação a pedido de voto.
Desde já se lança a polêmica: o caput fala em pedido explicito de votos e nesse inciso não se traz tal previsão.
E agora? Nessa divulgação lícita de seus atos como parlamentares e até mesmo eventuais debates legislativos próprios ao exercício do mandato, ele pode pedir votos de modo implícito?
Com todo respeito a quem pensa em contrário, nos parece que não, por mais que sempre o faça e isso passe desapercebido, pois em se permitindo tal atitude, repito, estaríamos desnaturando o sistema como um todo, em especial nessa parte em que sua permissão se encontra alicerçada em um mandato público que deve ser exercido sem proselitismo, logo tal ação viola frontalmente a própria isonomia, que já é abalada pela realidade que o detentor do mandato possui frente aos demais eventuais candidatos.
Pensar diferente dessa realidade seria fechar os olhos para o que acontece na prática, o que nunca vamos admitir, logo o ideal é que se assegure ao parlamentar a prerrogativa de exercício de seu mandato, até mesmo como um dever de prestação de contas, contudo, podando eventual ilicitude de se querer fazer propaganda irregular, o que causaria maior discrepância frente às oportunidades de todos que se lançarão ao público no momento oportuno.
E mais, não podemos esquecer nunca que nessa atividade lícita, por excelência, podemos ter abuso de poder político e em se perpetrando tal ato nefasto, além da multa por propaganda irregular, o parlamentar poderá ganhar a eleição e não levar como se diz e tanto vem ocorrendo nesses últimos anos, logo o equilíbrio entre essa permissividade e a ansiedade em querer ter contato direto com o eleitor deve guiar a conduta do parlamentar.
Como juiz eleitoral quando em efetiva atuação, sempre assegurei aos parlamentares o pleno exercício de seus mandatos, contudo, infelizmente, vi várias vezes o abuso do poder político se perpetrando, como registrei em nosso livro https://www.editorajuspodivm.com.br/abuso-do-poder-nas-eleicoes-triste-realidade-de-politicaagem-brasileira-2020. Logo, não há como olvidar dessa realidade que ainda permeia com muita incidência o nosso processo eleitoral e que talvez nessa abertura trazida pela legislação aumente, porém tende a se acomodar no futuro, acaso desde já firmemos a ideia de que não admitiremos nenhuma forma de abuso nessa fase preambular que comentamos.
Então, para que realmente as ideias floresçam nessa fase e se respeite os direitos e se assegurem os deveres, devemos agir com parcimônia, entendendo que não há uma pré-campanha, como muito bem ressaltou o Ex-Ministro do TSE Henrique Neves na consulta já citada acima, mesmo se entendendo que os atos previstos no artigo comentado não são taxativos.
Dentro dessas ponderações, indagamos se o político ou candidato a tal posto deve insistir nessa tática de conquistar o mandato cometendo ilegalidades? E mais se o eleitor deve continuar aceitando tal postura ou participando dela?