A escola sempre fez parte da vida do educador Fernando Laerty. Ainda pequeno, costumava ser levado por uma tia que era professora para as salas de aula. Quando iniciou os estudos na rede pública de Santo Antônio do Salto da Onça, cidade do Agreste Potiguar, ele já sabia qual profissão queria seguir.
“Desde o ensino fundamental, eu já me via na posição de docente. Quando o professor faltava, eu pedia para adiantar a disciplina, dava conteúdo para os colegas, tirava dúvidas. Era muito comum eu ficar sempre na sala dos professores, com a supervisão e a direção, porque, para mim, esse contato com a educação já fazia parte da minha rotina”, conta o professor.
Laerty foi o primeiro da família a concluir o ensino superior e fazer doutorado. Investiu as fichas do seu futuro na educação, e ganhou a aposta. Hoje, o professor de Linguagens atua na Escola do Serviço Social da Indústria (SESI) em São Gonçalo do Amarante/RN e procura oferecer o melhor de si todos os dias para os alunos. Em 2022, ele passou a contar com uma nova aliada nesse desafio: a Inteligência Artificial (IA).
QUEM SAI NA FRENTE
Ganhando cada vez mais espaço no nosso dia a dia, não demorou para que a IA também adentrasse nas escolas. Um estudo do Instituto Semesp, centro de pesquisas do Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior, divulgado em maio deste ano, revelou que três em cada quatro professores concordam com o uso da tecnologia e Inteligência Artificial como ferramenta de ensino.
Apesar dos desafios para a aplicação, especialistas acreditam que a IA vai fazer parte do futuro da educação. Nessa corrida, quem sai na frente se prepara melhor para o que está por vir. Foi essa a visão do SESI/RN ao implementar o uso da tecnologia em três de suas unidades: São Gonçalo do Amarante, Macau e Mossoró. Há dois anos, alunos e professores começaram a usar a Letrus, uma plataforma de correção de textos que contribui para o aperfeiçoamento da escrita por meio da Inteligência Artificial.
“O SESI começou a integrar a inteligência artificial nas salas de aula em 2022. A principal razão para essa integração é o potencial da IA em melhorar a qualidade do ensino e facilitar o trabalho dos professores. A IA ajuda a automatizar processos burocráticos, aprimorar a aprendizagem dos alunos e fornecer feedback personalizado”, explica a gerente executiva de Educação do SESI/RN, Ana Karenine Medina.
A plataforma é utilizada em turmas do ensino fundamental e médio do Sesi Escola. Do 6º ao 8º ano, os alunos produzem textos de diferentes gêneros, como conto, crônica e resenha. A partir do 9º ano até o 3º do ensino médio o foco é na produção do texto dissertativo-argumentativo, cobrado no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
O funcionamento é mais simples do que se imagina. A Letrus possui um cronograma e já sugere temas para a escrita da redação. Os estudantes passam por uma preparação, tendo acesso a conteúdos e respondendo a questionário sobre o assunto abordado, para só então, digitar o texto e enviar à plataforma.
“Não é só a escrita; eles passam por um processo de conhecimento do tema antes de iniciar a correção e eu tenho acesso a isso. Sei se eles erraram, se acertaram. Na hora da escrita, eu vou acompanhando, e consigo ver, por exemplo, que determinado aluno está com 30% da sua escrita pronta. E quando ele finaliza, e fecha o processo, eu tenho acesso a todo o escopo da redação dele”, detalha Bento Lécio, professor do SESI Mossoró.
DE INIMIGA A ALIADA
Para implementar a IA no dia a dia dos alunos, a preocupação inicial do SESI foi capacitar os professores para que eles aprendessem a dominar a plataforma e, assim, conseguissem extrair todo o potencial que ela tem a oferecer. O começo dessa parceria, no entanto, não foi tão amistoso. O primeiro contato dos docentes com a Letrus causou estranhamento e o medo da substituição do homem pela máquina.
“Eu estava acostumado com a função manual, e de repente, vi uma inteligência que é capaz de desempenhar esse trabalho humano. Veio a preocupação, né? ‘Nossa, eles estão ocupando o nosso espaço. Se hoje já temos uma inteligência que é capaz de fazer isso, então como vai ser amanhã? O que ela não será capaz de fazer?”, relembra Laerty.
Para Bento, o sentimento foi o mesmo. Com mais de 20 anos de profissão, o professor de semblante sereno faz sucesso com os alunos, que o param no corredor para tirar dúvidas e até bajular, a fim de descobrir as notas das provas. Os anos de experiência ensinaram a ele que quando o assunto é educação, é inevitável se adequar às tecnologias que surgem.
“Com tudo novo, nós temos uma desconfiança, e no primeiro momento eu pensei: ‘Vixe! A inteligência artificial vai tomar no meu lugar de trabalho’, mas quando conhecemos como ela funciona, como é aplicada na realidade do dia a dia do aluno, a gente percebe que ela não veio para nos substituir e sim para proporcionar a melhoria do nosso trabalho […] Ela deixou de ser o inimigo e passou a ser a aliada”.
Mestre em Sistemas e Computação e doutoranda em Ensino, Jéssica Figueiredo atua como professora na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern) há 19 anos. Com foco nas áreas de tecnologia e educação, a pesquisadora analisa o uso da IA nas escolas como uma possibilidade de tornar o ensino mais envolvente e dinâmico.
“Com o avanço das tecnologias de Inteligência Artificial e as possibilidades de seu uso na educação, nós também temos um avanço na personalização da educação, temos a possibilidade de uma educação mais dinâmica, mais afetiva, mais engajada. Nós temos a possibilidade de colaborar com os professores dentro e fora de sala de aula”, afirma Jéssica.
Assim como os educadores, os alunos também tiveram uma certa resistência no início. Renan Medeiros estuda na SESI Escola de São Gonçalo do Amarante desde o começo do Ensino Médio. Apesar de estar sempre conectado, o primeiro contato com a IA foi através da Letrus.
“Era totalmente diferente do que eu estava acostumado. Eu nem sabia que isso era possível, para ser sincero. Eu estranhei, porque na minha antiga escola eu colocava lá para o professor corrigir, ele corrigia e dava só a nota. Mas a Letrus, além da nota, dá especificidades também, como ortografia, gramática e competências”, conta Renan.
Estudantes da SESI Escola Mossoró, João Gabriel e Pandora Santos, também tiveram dúvidas sobre o funcionamento da tecnologia e se a avaliação dela seria tão confiável quanto a do professor. Essa primeira impressão mudou após os alunos começarem a ver seu desempenho na escrita melhorar significativamente.
“De início, eu achava que ela não ia funcionar, porque eu não conhecia e confiava mais no professor. Mas depois eu vi que ela explicava direitinho o que estava errado e o que faltava. Ela mostrou que eu errava muito na conclusão dos textos, que os agentes e os conectivos eram aspectos que eu pecava bastante. Depois, fui melhorando e aumentando minha nota”, diz Pandora Santos.
RAPIDEZ E DETALHAMENTO
A correção, que, quando era realizada exclusivamente pelos professores levava uma média de 10 a 15 minutos, com a IA passou a ser feita em alguns segundos. Além da rapidez, a avaliação é detalhada, ressaltando todos os aspectos de cada uma das competências analisadas na redação, e personalizada, permitindo ao docente ver o histórico de desempenho do aluno.
“Nós conseguimos trabalhar outros pontos, que antes não eram possíveis porque demandava muito tempo para correção. O bacana é que ela estratifica, então a gente consegue saber exatamente o que aluno aprendeu, o que que ele deixou de aprender. Sabemos qual era o desempenho médio do aluno lá na primeira produção, qual foi na oitava redação. Agora, focamos muito mais em dar o feedback para o aluno, do que conseguir de uma forma global, entender todo o resultado para dar assistência pontual”, fala Laerty.
Com o novo método, o professor conseguiu ajudar o aluno Renan a evoluir na escrita. Na primeira correção, a nota do estudante foi 720 pontos; com o tempo subiu para a casa dos 900, mas estacionou. Determinado, Renan queria tirar o tão sonhado 1000, e mesmo com as dicas da Letrus, ele buscou em Laerty o empurrão que lhe faltava.
“Eu não queria mais tirar 900, então eu falei: ‘Laerty, onde é que eu estou errando?’. Ele me mostrou e aí sim eu consegui tirar 1000. Ela [a IA] às vezes generaliza muito, sabe? Não é tão precisa no que a pessoa quer, então, se eu quero saber uma coisa específica, vou lá e pergunto para o professor”, observa Renan.
Para Bento, o auxílio da IA também permitiu uma melhor conexão com os alunos durante o processo de aprendizagem. O professor dá aula em oito turmas e diz ser impossível calcular quantas redações lê por ano. Com o uso da plataforma, ele otimizou o trabalho e conseguiu dedicar mais tempo a ouvir os estudantes e dar a eles, inclusive, a liberdade de questionar as notas. Trocou o papel de árbitro principal pelo de “VAR”.
“Há pontos positivos e pontos negativos, assim como na correção humana. Então, eu deixei muito aberto para que, quando eles fizessem a redação e a nota não fosse a esperada, eles trouxessem para que eu refizesse a correção, o que você concorda pode trazer a relação que eu faça correção”, ponderou o professor.
O trabalho conjunto de professores, alunos, somado à tecnologia trouxe resultados notáveis. No ano passado, a SESI Escola RN foi considerada ‘Referência Letrus’, tendo conquistado um excelente desempenho no ranking da plataforma para prática de redação. Ao todo, foram cinco primeiros lugares no Ensino Médio e Ensino Fundamental. Além disso, as escolas já colhem os frutos no Enem. Na edição 2023 da prova, mais de 30 alunos da terceira série da SESI Escola de São Gonçalo do Amarante obtiveram 900+ na redação.
Jéssica Figueiredo explica que assim como a democratização do acesso, o uso responsável desse tipo de tecnologia é um grande desafio, por isso, a importância de ter os professores como mediadores nesse processo.
“Precisamos ter cuidado com o uso excessivo dessas ferramentas e dessa tecnologia. Nós defendemos o uso equilibrado, o uso mediado por professores, é muito importante para que a gente possa obter todos os benefícios que a tecnologia de informação e comunicação podem fornecer à educação. Para o acesso das tecnologias de formação e comunicação, nós também precisamos educar para o uso correto delas”, alerta a professora.
OLHO NO OLHO
Por mais que tenha se adaptado bem à tecnologia, toda a comunidade escolar reconhece que o ser humano continua sendo a chave mestra no que se refere à educação. Apesar de todo o potencial, a IA, além de ainda estar em desenvolvimento, tem suas limitações técnicas e, principalmente, não consegue estender a mão como só um professor é capaz de fazer com um aluno.
“Ela [a IA] não entende o contexto do aluno, mas eu entendo porque eu estou com ele todos os dias. A plataforma não vai motivar o aluno, mas eu posso. Motivar a ser mais crítico, a ser mais produtivo. A nota boa da redação é um conjunto de fatores: é a família, é a escola, é o acesso às plataformas como as que nós utilizamos, é a figura do aluno e, especialmente, a do professor. Ela é uma ferramenta, nunca o método”, afirma Bento Lécio.
Nisso, os alunos assinam embaixo: “A plataforma corrige a ortografia, o que falta na conclusão, mas Bento me ensina a ser crítico na escrita, a colocar uma autoria na própria redação, uma parte, uma opinião, minha personalidade”, conta João Gabriel.
Depois da IA, os professores sentem que estão conseguindo dar uma preparação ainda melhor para os alunos, tanto para o ingresso no ensino superior, quanto para um futuro no mercado de trabalho que exige cada vez mais conhecimentos atuais dos profissionais.
“Toda a metodologia quer seja tecnológica ou não, ela precisa ser ensinada. Nós somos fruto do sistema S, e não só preparamos os alunos para ter esse contato com a inteligência artificial, mas com toda e qualquer tecnologia, e, principalmente, com o mercado de trabalho. Se o aluno desejar entrar no ensino superior, ele vai ter qualidade para isso, e se ele quiser entrar no mercado de trabalho, na indústria, vai ter também potencial para isso”, assegura Fernando Laerty.
Bento segue a mesma filosofia. Se dedica para que o aprendizado passado dentro da sala de aula seja o diferencial na vida dos alunos. “Quero ver eles no futuro, na faculdade, ocupando o mercado e pensar: eu fiz parte disso, tem um tijolinho meu”.
No que depender do SESI RN, esse desejo do professor vai ser mais do que real. Depois da Letrus, no próximo mês, o Sistema utilizará uma outra plataforma de escrita com IA, capaz de corrigir redações manuscritas, que vai permitir uma experiência ainda mais parecida com o que os alunos enfrentam no Enem. E não para por aí:
”O contato com a tecnologia será o link desses alunos com o futuro que está cada vez mais tecnológico. É o futuro! O SESI continua a investir na IA e, para o próximo semestre, teremos também uma plataforma voltada a matemática”, afirma Ana Karenine Medina.
Para Jéssica, a IA também fará parte do futuro da educação, e neste momento, iniciativas como a do SESI, representam um amanhã mais promissor para os jovens de hoje. “Proporcionar aos alunos o uso de ferramentas inovadoras que permitam uma personalização no seu aprendizado é sim a garantia de um futuro promissor. Nós não vamos permitir que os alunos tenham uma educação analógica, porque o futuro é tecnológico”.
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