Por Taysa Nunes
A senhora à minha frente tem o cabelo preso à nuca por um rabo de cavalo. Ela usa um vestido estampado que chega aos joelhos, com mangas abaixo dos cotovelos. Uma mulher de sorriso fácil e conversadeira. Maria é o nome pelo qual quer ser chamada. Só e somente só – e existe um motivo que logo mais à frente contarei. Aos 78 anos de idade, mora com o filho e a nora. O esposo faleceu. Nasceu e se criou na zona rural do Rio Grande do Norte, no Nordeste do Brasil, por 75 anos. Foi agricultora de mão cheia em épocas passadas e até hoje fala dos momentos difíceis da seca, mas também dos dias de glória – de quando o roçado ficava verdinho por causa da chuva e cheio dos frutos que um bom período de inverno traz.
A idade, assim como para tantas outras pessoas, trouxe as doenças do tempo, mas o que dona Maria não imaginava é que uma delas chegaria no formato de marcas que mudariam sua forma de viver. As primeiras lesões, ainda muito tímidas, começaram a aparecer em 2016 aos 72 anos. “Os médicos diziam que era alergia ao sabão”, ela conta. “Mas nunca foram feitos testes alérgicos”, acrescenta o filho Francisco, à mesa, acompanhando nossa conversa. Dona Maria continua: “Eu ia aos médicos direto, e sempre me medicava sozinha com pomadas”. Enquanto fala, percorre com os dedos as cicatrizes que estampam os braços como se mapeasse o percurso da doença. Ela também explica que quando partes do corpo se chocavam com as paredes ou móveis, manchas escuras como hematomas, de tons avermelhados, sempre apareciam – não doíam, mas coçavam.
A primeira mancha, aquela que seria a maior de todas, surgiu no antebraço direito. A marca se intensificou após o falecimento do esposo e se alastrou para a parte superior do braço. Em 2019, quando se mudou para Mossoró, capital do oeste potiguar, procurou assistência médica, mas nada foi detectado logo de início. “O primeiro dermatologista disse que era uma alergia a fungos, mas depois de dois meses, sem resultados com os medicamentos, procuramos outro médico que desconfiou das marcas e pediu uma biópsia”, relata o filho Francisco. E lá estava o resultado após alguns dias de espera: no exame foi constatado que era hanseníase.
Uma doença secular
A hanseníase é uma das doenças mais antigas da humanidade, com histórico de casos desde o ano 600 antes de Cristo. Mesmo sendo tão antiga, ainda é um sério problema de saúde pública. O Brasil, por exemplo, possui o segundo maior número de casos do mundo, ficando atrás apenas da Índia. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o nosso país, em 2017, teve 26.875 casos; a Índia 126.164. O auge da doença, em território brasileiro, foi verificado em 2003, com 51.941 casos. Para explicar por que a hanseníase ainda continua como problema de saúde pública no Brasil, Patrícia Barreto, que é doutora em enfermagem e pesquisadora da doença, informa que “a hanseníase está associada com a pobreza, condições de moradia ruins etc. Ela está inscrita no rol das doenças negligenciadas porque não dá lucro para indústria farmacêutica e quase não atinge as camadas mais abastadas economicamente”. Em 2016, o Ministério da Saúde oficializou o primeiro mês do ano como o “janeiro roxo”, direcionado às campanhas educativas de conscientização e combate à doença no país.
“São necessárias pesquisas para aprimorar o diagnóstico no sentido de fazê-lo cada vez mais cedo para iniciar o tratamento e quebrar a cadeia de transmissão. Maior divulgação da doença nos meios de comunicação com informações seguras e de fácil compreensão da população”, diz Patrícia Barreto. Ela prossegue explicando que existem formas de hanseníase diferentes, mas todas são provocadas pelo mesmo patógeno: o bacilo de Hansen. São elas: inderteminada, tuberculóide, dimorfa e wirchowiana. Quem já teve hanseníase uma vez pode sim ter novamente – e do mesmo tipo. A hanseníase é causada pela interação bacilo/sistema imunológico do paciente, assim, esse sistema imunológico vai sempre reagir da mesma maneira ao bacilo.
“Num dos testes, o médico colocou uma pedra de gelo em cima do meu braço, onde tinha a primeira marca, e ‘tava’ dormente”, detalha dona Maria, olhando para as cicatrizes. Pergunto a seu Francisco qual foi a reação com o resultado do exame. Ele diz que ninguém sentiu medo e logo o tratamento foi procurado. “Não ia abandonar, né? É família. Minha mãe”.
O resultado da biópsia foi divulgado em 21 de janeiro de 2020; em 22 de janeiro daquele mesmo ano os cuidados contra a doença começaram. Dona Maria foi encaminhada ao Centro Clínico Professor Vingt-un Rosado, mais conhecido como PAM do Bom Jardim, em Mossoró, que também é um centro de referência no tratamento da hanseníase há cerca de 20 anos. Apesar de dona Maria ter procurado uma clínica particular, a primeira porta de entrada é nas unidades básicas de saúde, através do Sistema Único de Saúde (SUS), para logo depois o paciente ser encaminhado ao PAM do Bom Jardim, passando pela equipe de referência para exames.
Ao longo do tratamento, a pessoa recebe todos os cuidados e acompanhamentos nas UBS, de acordo com a diretora da Vigilância em Saúde do município, Érica Cibele. “A busca ativa, além do trabalho de rotina que é contínuo nas UBS, o município realiza capacitações, estudos epidemiológicos, proposições de ações de integração da rede primária com o Programa de Hanseníase, apoiando atividades educativas e produção/doação de material educativo para os profissionais”, informa a gestora.
“Atendimento muito bom. As enfermeiras entravam em contato com a gente pelo celular querendo saber como minha mãe estava se sentindo, pedindo fotos e vídeos”, diz seu Francisco. A partir de abril de 2020, após pouco mais de um mês da pandemia do coronavírus ser decretada pela OMS, o acompanhamento passou a ser em casa com o filho indo pegar a medicação no PAM do Bom Jardim.
Dados do Ministério da Saúde indicam que o Brasil diagnosticou 15.155 casos de hanseníase em 2021; em 2020 foram 17.979. O número de casos foi bem menor quando comparamos a 2019, antes da pandemia da Covid-19 – naquele ano foram notificados 27.864 casos da doença. Em 2020 a Organização Mundial da Saúde reportou 127.396 novos casos de hanseníase no mundo. Para os pesquisadores, a pandemia abalou a detecção de novos casos. Os números mais baixos podem estar ligados à subnotificação da doença por causa da crise na saúde, além do medo de sair de casa e do contato presencial.
Em 2020 Mossoró ganhou uma parceria no combate à hanseníase: a NHR Brasil que pertence aos escritórios da ONG Holandesa NLR (atuante no nosso país desde 1996). A causa apoia projetos e é focada em áreas de alta endemicidade para a hanseníase, envolvendo outras Doenças Tropicais Negligenciadas (DTN). Ao conversar com o coordenador do projeto IntegraDTNs++, Askanio Teixeira, ele explica que Mossoró foi escolhida como um dos polos de trabalho, porque no plano Estadual do Rio Grande do Norte 2020-2023, a hanseníase e a tuberculose são destacadas como as doenças de notificação compulsória que merecem atenção. “Quanto à ocorrência por região de saúde, a que apresenta incidência consideravelmente superior às demais é a região de Mossoró”, ele completa. O fato chamou bastante a atenção da NHR Brasil. Ainda segundo Askanio Teixeira, atualmente são 53 pacientes em tratamento ativo contra a hanseníase em Mossoró. Os dados foram repassados pela Secretaria Municipal de Saúde no dia dois de setembro deste ano.
O IntegraDTNs++, da NHR Brasil, foi projetado para três anos, tendo início em 2020. O projeto pode seguir em 2023, já que existe um plano de atuação e um orçamento pré-aprovado. Entretanto a decisão final ocorrerá no mês de novembro em discussão com a Secretaria Municipal de Saúde e os gestores. O projeto busca propor um modelo integrado de trabalho para atenção, vigilância e controle da hanseníase, tuberculose e outras DTNs no âmbito municipal. “Através deste modelo podemos melhorar a comunicação entra as unidades e a gestão, melhorar o processo de trabalho dos profissionais de saúde e promover treinamentos, na expectativa de melhorar os indicadores dos agravos”, diz o o coordenador do projeto IntegraDTNs++. Para a diretora da Vigilância em Saúde, Érica Cibele, o projeto foi um ganho para o município, pois traz a estratégia de assessoramento técnico voltado para a hanseníase e tuberculose. “E ainda proporciona integração entre vigilância e atenção básica”, reforça.
Tratamento
O tratamento de dona Maria acabou em dezembro de 2020. Com um ano recebeu alta e foi acompanhada pela equipe do PAM do Bom Jardim durante 6 meses. Os medicamentos não causaram efeitos colaterais. “Se não tivesse melhorado, achava que ia morrer. Quando fiz o primeiro tratamento, já fui melhorando. Eu era pintadinha que nem ‘chita’, mas as manchas nunca viraram feridas nem bolhas”. A indicação do tratamento é diretamente relacionada à condição clínica de cada paciente, podendo variar de seis meses a um ano. Os medicamentos diminuem os problemas de complicações e bloqueiam a transmissão da doença. “A gente considera um limite de 15 dias para a não transmissão, mas, teoricamente, quando alguém toma a primeira dose [da medicação] supervisionada já está livre de bacilo no trato superior que é por onde você transmite a doença – gotículas de saliva através do nariz e boca”, informa Patrícia Barreto, que é pesquisadora da área.
Hoje dona Maria fala com tranquilidade, mas foram meses de preocupação. Ela diz que sofreu muito, “as manchas esquentavam como fogo” e que dormia com um pano molhado nos braços todas as noites para aliviar a quentura dos membros que não queria ir embora. Os dedos das mãos eram dormentes; ela costurava, apesar de não senti-los tão bem, para não piorar. As mãos voltaram ao normal, mas dona Maria não sente os dedos do pé direito. Coxas, braços, pés, costas, mãos, nuca e rosto foram áreas afetadas. Todas as partes lesionadas eram dormentes (e algumas outras, atualmente num tom mais claro do que a pele, ainda são).
Encarando o preconceito
A preocupação de dona Maria ia para além da doença que ocupou seu corpo. E neste momento explico a você, caro leitor, porque a nossa entrevistada não quis ser identificada, dizer o nome verdadeiro do filho e contar de onde veio. O restante da família e amigos nunca souberam da hanseníase. “Se soubessem que eu tinha a doença, não iam querer saber de mim. Eu tinha vergonha; só vivia enrolada. Parecia uma mochila”. Mesmo após o final do tratamento, dona Maria tem medo que seus entes saibam o que aconteceu.
“É terrível a forma como as pessoas sofrem, mas ninguém explica que a transmissão se dá pelo contato prolongado (no máximo 20h semanais). Diferente de uma transmissão de um vírus. A bactéria se multiplica a cada 21 dias, por isso a doença tem um período de incubação de até 5 anos”, explica Askanio Teixeira quando questiono sobre os preconceitos que uma pessoa sofre com a hanseníase. Patrícia Barreto completa: “O estigma impede principalmente a busca pelo diagnóstico, atrapalha o tratamento e deteriora a saúde mental das pessoas com hanseníase”.
O café foi deixado de lado pela conversa que durou quase meia hora. Estamos prestes a terminar o nosso diálogo. Pergunto para dona Maria o que ela gostaria de dizer para uma pessoa que tem hanseníase, mas tem receio de buscar ajuda. Ela me responde: “o conselho que eu dou é que ela vá se tratar pra ficar boa, porque a doença é ruim. Ruim demais”.
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