Um acidente doméstico com fogo deu início a uma saga na vida da psicóloga Érika Pedrosa e da sua filha de 12 anos, Sofia Rocha.
Sofia estava fazendo fondue com o pai, e quando ele foi ascender o aparelho, o fogo, derivado de álcool em gel, acabou se espalhando, e atingindo a menina. Num primeiro momento, os pais pensaram em levar Sofia para um hospital particular, já que ela tem plano de saúde, mas orientados por um médico amigo da família, ela foi levada para o Hospital Regional Tarcísio Maia.
“Chegando no Tarcísio Maia, a equipe médica da pediatria deu toda a assistência […] foram verificadas a extensões de queimaduras e grau, ela foi já colocada na medicação, e nos informaram que em razão da extensão e do grau teria que ser transferida para Natal”, conta Érika.
A menina teve 25% do corpo afetado por queimaduras de 1º e 2º graus, e por causa da gravidade, precisou de atendimento especializado. Foi quando Érika foi pega de surpresa ao descobrir que no Rio Grande do Norte só existe uma unidade para tratamentos de queimaduras: o Centro de Tratamento de Queimados do Hospital Walfredo Gurgel.
De acordo com a Secretaria de Saúde Pública do Estado (Sesap/RN), o CTQ recebe em média 73 pacientes por mês. Até maio desse ano 369 pessoas deram entrada com queimaduras no Centro, e o perfil era de 30% de casos de queimaduras por álcool líquido, 30% de queimaduras decorrentes de acidente com eletricidade, e 30% por etanol combustível.
Marcos Almeida, cirurgião plástico e coordenador do CTQ, fala que nos últimos meses observou-se um aumento no número de queimados em decorrência do uso do combustível na cozinha. De acordo com ele, esse número está relacionado ao aumento do valor dos combustíveis, quando a população troca o gás pelo etanol.
“Tem chamado muito a atenção a questão da incidência de pacientes queimados, principalmente nos últimos meses né? […] Porque as pessoas, principalmente no Norte e Nordeste do Brasil, muitas vezes cozinham com etanol combustível, que a venda inclusive não legalizada, porque o combustível é pra ser vendido somente para carros. E também as pessoas passam a cozinhar com lenha, jogam álcool pra fazer o fogo, aquelas coisas todas que acabam criando um acidente, muitas vezes com morte”, diz Marcos Almeida.
O cirurgião ainda explica que o uso de álcool 70% e álcool em gel por causa da pandemia de Covid-19 também influenciou no aumento dos incidentes. No caso do álcool em gel, o perigo é maior, pois as chamas do fogo são invisíveis. “Lembrando sempre que o álcool gel também pega fogo, só que tem um agravante, ele não só pega fogo como a chama é invisível. Então a pessoa só vai se dar conta do acidente quando ela já está no meio da queimadura”, explica Marcos.
O produto foi o responsável pelas queimaduras de Sofia, que foram mais extensas, devido o gel ser pegajoso e grudar mais na pele. A transferência da menina para o CTO foi rápida e todos os procedimentos de urgência foram feitas pela equipe para aliviar o sofrimento causado pelos ferimentos. Apesar do bom atendimento realizado pelo Centro, outros fatores dificultaram o tratamento da menina.
Para Érika, o fato de a única unidade especializada na área estar localizada na capital do estado, é uma grande adversidade para quem vem do interior. “No Centro de Tratamento de Queimados foram feitos os procedimentos, e assim que ela acalmou, a gente já começou a angústia, né? Primeiro quase 300 quilômetros pra ter o atendimento adequado. A pessoa gritando de dor, porque é uma queimadura é terrível, e isso independe, se é criança, adulto, seja quem for”.
Segundo o coordenador do CTQ, dos pacientes que chegam ao Centro para serem tratados, 85% não precisariam ser encaminhados para o atendimento em Natal, e poderiam ser tratados em seus locais de origem, se lá tivesse o atendimento especializado.
Para Érika Pedrosa, além do sofrimento do tratamento das queimaduras, quem vem do interior sente as consequências da distância de casa. Ela passou 21 dias no Centro de Tratamento de Queimados com a filha, e sentiu o alívio de voltar para casa. “Eu passei 21 dias e chegaram outras pessoas de Mossoró e de toda a região daqui, e era sempre a mesma coisa: o desamparo de estar numa cidade estranha, sem ter com quem contar, pra quem recorrer. A queimadura em si já é algo que traz não só uma dor física, mas uma dor emocional muito grande, o medo das sequelas, a ainda por cima você está distante de tudo e de todos”, conta Érika.
Apesar da demanda frequente de pacientes do interior, o coordenador do CTQ diz que, por enquanto, não existe intenção de criar novos centros de tratamento de queimados no RN, por ser uma estrutura muito cara. Segundo ele, uma das soluções para melhorar o atendimento das pessoas que sofrem queimaduras é descentralizar o atendimento, capacitando equipes multiprofissionais de outras regiões do estado, para que elas possam tratar os pacientes.
“Muitas vezes o que a gente vê é que um paciente que foi atendido de forma não adequada ou com muito atraso lá no interior, e chega às vezes aqui com um, dois, três, cinco dias de atraso, com lesões infectadas. Então o que a gente tem que fazer é gabaritar as equipes […] gabaritar os pontos de atendimentos nas várias regiões do estado”, afirma Marcos Almeida.
O tratamento de Sofia segue no mínimo pelos próximos seis meses, e Érika vai precisar levá-la ao menos uma vez por semana no CTQ. O desejo dela é que outras pessoas que passem por essa situação, possam ter acesso ao atendimento mais próximo de casa.