De óculos escuros e batom, dona Maria do Socorro não nega ser vaidosa. Sentada em sua cadeira de rodas, ela aguarda, junto às companheiras, o almoço a ser servido no Instituto Amantino Câmara, que acolhe idosos em Mossoró/RN. Aos 68 anos, enxerga na rotina, que para muitos pode ser enfadonha, a beleza de dias simples.
Quem a vê sorridente, não imagina como foi a primeira vez que se sentou à mesa no refeitório com mesas compridas sob o olhar complacente do Sagrado Coração de Jesus. “Eu cheguei muito nervosa, chorando muito, porque eu não queria vir. Era na hora do almoço quando cheguei. O homem me colocou na mesa para comer e eu não fiquei, fui para o quarto”, lembra.
Foram cerca de três meses recolhida em consequência de um quadro depressivo. Os cuidados da equipe e as amizades com os outros idosos foram os responsáveis por devolver a cor à vida de dona Socorro. Hoje, ela afirma com veemência: não quer sair nunca mais do Abrigo.
Assim como para dona Socorro, o Amantino Câmara é o lar de mais de 60 idosos. O Instituto sem fins lucrativos foi fundado em 1946 e oferece abrigo e cuidados a pessoas idosas de Mossoró e região em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Apesar de contar com convênios dos governos, são as doações que ajudam a equilibrar as contas.
“Hoje, o Instituto se mantém pela renda do idoso, pelos dois convênios – um com o Governo Federal e um com o Governo Municipal – e um termo de regionalização com o Governo do Estado. Ainda assim, as contas vivem no vermelho, por isso, precisamos frequentemente de doações”, explica Ênia Morais, diretora administrativa do Amantino Câmara.
Os valores arrecadados são 100% voltados para o custeio da entidade e o pagamento do corpo funcional. Ao todo, 43 profissionais atuam no Abrigo em diferentes atividades. Incluindo cuidadores, auxiliares, técnicos, enfermeiros, fisioterapeutas e médicos, que trabalham no cuidado integral, todos os dias da semana.
Com cabelos curtos e semblante sério, Ênia Morais facilmente abre um sorriso para receber quem chega no Amantino para visitar. A cientista social está à frente da entidade há 14 anos. Quando chegou, em outubro de 2010, o Amantino tinha muitas deficiências, e recebia todos os idosos independentemente da situação.
Com os anos, a instituição realizou melhorias e se adequou à Resolução de Diretoria do Colegiado (RDC) do Ministério da Saúde que dispõe sobre o funcionamento das Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI).
“Quando eu cheguei, todo e qualquer idoso era recebido. Com o passar do tempo nós fomos recebendo inspeções do Ministério Público e fazendo valer as normativas previstas na RDC. Hoje, por exemplo, dependendo do grau de mobilidade do assistido, nós temos que dispor de uma quantidade específica de profissionais, para que o cuidado seja o adequado”.
CUIDADO COM QUALIDADE
Segundo o Ministério Público do Rio Grande do Norte (MPRN), a atuação no Amantino faz parte de um trabalho de anos desenvolvido em Mossoró na defesa dos direitos da pessoa idosa. Anualmente o MPRN realiza visita ao Abrigo, ouve os idosos, analisa os serviços e faz recomendações. A inspeção de 2024 aconteceu no dia 9 deste mês, em alusão ao mês da valorização da Pessoa Idosa, celebrado em outubro.
Para Guglielmo Marconi, promotor de Justiça, essas fiscalizações foram responsáveis por uma evolução na qualidade da assistência oferecida.
“Percebemos uma notória evolução na qualidade dos serviços ofertados aos residentes na ILPI, com melhores condições de acessibilidade, adoção de normas e procedimentos operacionais nas atividades de produção de alimentos, cuidados pessoais, higienização, dentre várias outras realizadas na entidade, o que é fruto, também, de um trabalho continuado de cobrança e orientação não só pela Promotoria de Defesa da Pessoa Idosa, assim como da Vigilância Sanitária e Corpo de Bombeiros”, diz o promotor.
Além de fiscal, o MPRN se tornou um parceiro do Abrigo. Em uma das últimas ações, o órgão indicou e ajudou a viabilizar a instalação de uma lavanderia industrial no Instituto.
“A atuação do MP tem sido tão positiva que a gente conseguiu até a reforma da nossa lavanderia por uma ação da Promotoria do Idoso que mobilizou diferentes comarcas para que valores de multas, por exemplo, fossem revertidos para uma conta aberta especificamente para as obras. Sem essa mobilização, seria impensável termos uma lavanderia industrial”, relata Ênia Morais.
Outras mudanças na estrutura do Amantino também fizeram a diferença no acolhimento dos idosos, como um posto de enfermagem, uma sala de fisioterapia e até uma reforma no jardim com banquinhos que convidam ao contato com a natureza. O espaço se tornou um dos preferidos de seu Pedro Maia, de 92 anos.
Eletricista, cantor, contador de histórias e o que mais a sua astúcia lhe permitir, seu Pedro não dispensa ficar na pinta. Independentemente da temperatura, usa camisa e calça social e combina boné com óculos de sol. Natural de Caraúbas/RN, fugiu de casa aos 16 anos, embarcando no trem que vinha para Mossoró. Entre muitas idas e vindas, há 10 anos o Amantino se tornou seu lar. Lá encontrou acolhimento e aprendeu a acolher.
“Eu gosto de morar aqui porque, além do cuidado, são amizades que me fazem seguir. Somos uma família”, afirma.
Com a rima na ponta da língua, seu Pedro só interrompe a cantoria quando é para estender a mão amiga. Quando o sino toca anunciando a próxima refeição, ele é um dos responsáveis por ajudar os outros idosos a chegarem ao refeitório. Para aqueles que não têm mais para onde ir, o Amantino é isso: uma última chamada para o afeto.
A BUSCA PELO DIREITO
Por mais conhecido que seja o trabalho do Instituto, só é possível entender o impacto dele no olho a olho. Nas camas com lençóis limpos, nos armários que guardam separadamente as roupas de cada um, nas cadeiras que preenchem os largos corredores, fica evidente que a prioridade é dar aos idosos a oportunidade de envelhecer com dignidade. Um direito que não é garantido para todos.
Sendo o único abrigo deste tipo em Mossoró, o Amantino Câmara não consegue atender à demanda de idosos que precisam de acolhimento. A fila de espera por uma vaga no Instituto, que hoje tem cerca de 20 pessoas, já chegou a quase 50 – números que, segundo o MPRN, apresentam subnotificação.
Essa situação vem sendo acompanhada há alguns anos pelo órgão. Em 2016, um inquérito civil foi instaurado para apurar a responsabilidade do Município de Mossoró em manter um abrigo para acolher idosos. Dois anos depois, a questão foi judicializada por meio de ação civil pública.
“O processo foi julgado em primeira instância em agosto de 2019, sendo dado como procedente o pedido formulado pelo Ministério Público pelo Juízo da 1ª Vara da Fazenda Pública de Mossoró. A partir de então, houve recurso para o Tribunal de Justiça e para os Tribunais Superiores, sendo mantida a decisão de primeiro grau, impondo definitivamente ao Município a obrigação de implantar uma ILPI pública em seu território”, explica Guglielmo Marconi.
Durante o processo, foi cogitada a possibilidade de aumentar o número de vagas no Amantino, mas essa ideia foi descartada por falta de espaço físico para ampliação. Com isso, a única solução encontrada para atender à demanda, foi a implantação de um abrigo público mantido pela Prefeitura.
A determinação da sentença que transitou em julgado em 2022 era para que o Município incluísse no seu planejamento orçamentário a previsão de recursos para implantar e manter uma ILPI. Em junho deste ano, o MPRN cobrou o cumprimento da decisão.
“A sentença determinou que o Município de Mossoró inclua no seu planejamento orçamentário verba destinada a implantar e manter abrigo público, em padrão que atenda às normas que regem a matéria, devendo a ILPI ser implantada efetivamente no prazo de 180 dias, a contar do exercício financeiro que contemple a verba menciona”.
No texto da Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2025 enviado pelo Executivo à Câmara Municipal de Mossoró para aprovação, consta a previsão dos recursos: R$1 milhão e 90 mil para implantação da ILPI e R$290 mil para manutenção. De acordo com a Procuradoria Geral de Mossoró, a previsão da verba estava tanto dentro do planejamento do Município, quanto buscando atender à sentença da Justiça.
Assim que o projeto da LOA 2025 for aprovado pelo Legislativo, o orçamento entra em vigor. A partir daí, a Prefeitura terá cerca de seis meses para elaborar o projeto institucional de implantação do novo abrigo, definindo a quantidade de vagas, destinação de um prédio adequado para o funcionamento do serviço, aquisição de equipamentos, mobiliário e insumos, e admissão de pessoal.
“A previsão de verba na Lei Orçamentária Anual do Município de Mossoró de 2025 para a implantação de uma ILPI pública na cidade consiste no início de cumprimento da obrigação estabelecida judicialmente, sendo o primeiro passo nesse sentido, o que é avaliado positivamente pelo Ministério Público”, analisa Guglielmo Marconi.
Caso o prazo seja seguido, ainda em 2025, Mossoró se tornará a primeira cidade do Rio Grande do Norte a contar com um abrigo público para idosos.
Enquanto isso não acontece, aqueles que precisam aguardam para entrar no Amantino Câmara. As vagas só surgem diante do registro de óbito. Para Ênia, mesmo após tantos anos no Abrigo, esse segue sendo um dos momentos mais difíceis de enfrentar.
“Eles ficam na memória da gente. Por mais que a gente saiba que eles vêm para aqui para cumprir o tempo deles, é difícil de aceitar quando os perdemos. Mas independentemente de qualquer coisa, o nosso objetivo é oferecer a maior dignidade possível até os últimos segundos”.
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