Só uma bailarina conhece o sentimento de liberdade que mora nos passos de dança. A leveza de deixar o corpo ser levado pela vibração da música. Na flor da adolescência, Marianela achou que tinha encontrado seu par para dançar pela vida. Mas o primeiro namoro da jovem, roubaria seus passos durante mais de um ano.
Marianela, estudante de 22 anos, cresceu frequentando a igreja. Vinda de uma família religiosa, sempre viu naquele espaço um lugar de conforto e acolhimento. Foi aos 14 anos que ela esbarrou com um rapaz bonito em um culto pela primeira vez. Sempre que se encontravam se cumprimentavam e nada além disso. As diferenças entre eles eram tantas, que ela não queria proximidade, e a amizade entre os dois só viria a nascer cerca de dois anos depois.
Aos 16 anos – idade em que a igreja permitia começar a namorar – a aproximação finalmente aconteceu. A convivência dos dois aumentou, e amizade logo se tornou um flerte. Apesar do interesse amoroso que ele demonstrava e das conversas, não teve pedido de namoro, e eles acabaram se distanciando outra vez. “Ele veio conversar comigo quando eu falei que estava com a idade que poderia começar a namorar. E a gente conversou muito tempo, e eu fiquei até meio que esperando um pedido de namoro, que não aconteceu. A gente se distanciou e quando eu fiz 17 nós voltamos a conversar por uns meses, e aí ele me pediu em namoro”, conta Marianela.
A imaturidade natural da adolescência fez com que em pouco tempo de relacionamento, ela já pensasse em casar. O amor que ela tinha era tão grande, que apesar de sentir que havia algo de errado no namoro, ela não se permitia enxergar a realidade. A pouca idade e a falta de experiência se tornaram barreiras para que ela pudesse identificar as sutis agressões que estava sofrendo. O controle e manipulação que começaram a aparecer no quinto mês de namoro, eram vistos como carinho e cuidado. Ele começou a proibi-la de falar com todos os amigos do sexo masculino, de postar fotos nas redes sociais, e por fim, a fez desistir das aulas de dança. Marianela acreditava que estava abrindo mão dos seus passos em prol do grande amor da sua vida.
“Ele nunca falou que eu era feia ou coisa assim. Não, ele me via como linda, maravilhosa, e as agressões começaram justamente nisso. Ele não queria que eu falasse com nenhum amigo, eu falava escondida com meus amigos que eram homens. Não podia postar foto, porque ele via que eu estava querendo me mostrar […] Então eu deixava de fazer várias coisas simples do dia a dia, que no começo eu pensei que não iam me incomodar, mas que depois foram me sufocando”, relembra a jovem.
Quando finalmente percebeu que as atitudes do namorado lhe faziam mal, se viu encurralada. A dependência emocional que ela tinha dele impedia a separação, e o medo do julgamento das pessoas da igreja que os viam como um ‘casal perfeito’ também pesava nessa decisão. “Quando eu percebi que não estava certo, o que eu ia fazer? Porque na minha cabeça eu amava tanto ele. Ele era meu primeiro amor, a gente fazia plano de casal. Eu não podia terminar, sabe?”.
As agressões persistiram e pioraram com o passar dos meses. Ele não queria que ela saísse de casa, e falava que Marianela não precisava estudar. Além dos abusos psicológicos, ele começou a assediar a namorada fisicamente. Mas decisão de colocar fim no namoro só veio depois de uma ligação da mãe dele. “Eu terminei com ele quando a mãe dele me ligou e falou que ele batia nela e nas irmãs dele. Pra mim foi que a gota d’água. Tomei a decisão de terminar. Eu passei semanas pensando como é que eu ia fazer isso. […] Eu chamei ele na minha casa e terminei”.
Os meses seguintes foram dolorosos. Além da primeira desilusão amorosa que marca a vida de todo mundo, ela levava consigo a culpa que toda vítima de relacionamento abusivo carrega. Foram semanas a dentro chorando todos os dias, e na tentativa de esquecê-lo, ela mudou de igreja para evitar encontros, e se matriculou novamente nas aulas de dança para ocupar a mente. Ele, no entanto, não queria desistir do namoro. Ligava constantemente, queria convencê-la a reatar. A insistência foi tamanha, que ela acabou cedendo e acatou a ideia de voltar o namoro. Mas para ele, a volta tinha uma condição: deixar de ir para a aula de dança.
“Ele falou: “Você só precisa deixar de ir pra aula de dança”. Aquilo me trouxe de volta pra realidade que eu não queria entrar novamente. Eu estava livre. Eu ia conseguir superar aquilo. Foi muito choro, porque ele foi realmente o meu primeiro amor. Um relacionamento extremamente abusivo que me que tirou meu brilho durante muito tempo”.
Depois desse dia, Marianela resolveu reconquistar tudo que lhe foi roubado. Quando o namoro de fato terminou, ela conseguiu contar para as amigas e para a família tudo que acontecia. Todos já torciam pelo término, e com o apoio deles os dias foram se tornando mais leves. O sorriso que se escondeu durante meses, voltou a aparecer. “Eu falava algumas coisas pras minhas amigas próximas, mas eu também não falava tudo. Eu não falava pra minha família porque eu sabia que se eu falasse, eles iam dizer pra eu terminar, e eu não queria terminar. Mas a minha família sabia que tinha algo errado sabe? Eles sabiam que eu não estava bem, eles me me falavam muito pra terminar […] E quando eu terminei eles fizeram de tudo pra eu não voltar. E as minhas amigas também, sempre me apoiaram muito na minha decisão, e me ajudaram”, lembra a estudante.
Quatro anos depois ela consegue conversar sobre o que aconteceu, mas não sobre tudo. A violência psicológica nunca foi denunciada para nenhum órgão, muito menos para a igreja que frequentavam. Em situações de abuso, as vítimas acabam sentindo culpa e medo do julgamento. A saída acaba sendo tentar esquecer o que foi vivido para seguir a vida.
“Eu nunca denunciei pra ninguém, nem os [abusos] psicológicos, nem os assédios. E já me questionei muito, principalmente sobre os assédios físicos, e se eu tivesse feito mais alguma coisa? Mas eu disse não várias vezes, então não tinha mais o que ter feito. Eu poderia ter denunciado, e eu não denunciei. Eu só tinha dezessete anos. Eu queria me livrar daquilo […] Eu não queria ficar marcada por ter feito algo errado na igreja. Eu não queria ter ficado marcada como aquela menina que namorou e fez alguma coisa que não podia. Então eu não falei pro bispo e nunca procurei nenhum órgão pra denunciar”.
Não foi fácil superar o que aconteceu. Ela procurou ajuda profissional e fez acompanhamento psicológico cerca de um ano e meio para conseguir lidar com as consequências da violência sofrida. Os relacionamentos seguintes foram difíceis, e por diversas vezes os traumas impediram tanto o envolvimento emocional, como o físico. “Eu fiquei perdida sem saber o que eu podia, onde eu diria não, onde eu diria sim, nos meus seguintes relacionamentos. Eu fiquei sem saber até onde era amor, até onde era paixão… Eu fiquei muito perdida”.
A violência psicológica sofrida pela estudante em 2018 só foi enquadrada como crime pela Lei Maria da Penha há pouco mais de um ano, em julho de 2021. A lei considera como violência psicológica qualquer conduta que cause dano emocional ou prejudique o pleno desenvolvimento da mulher. Ameaças, constrangimentos, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir. Todas essas atitudes são consideradas agressões psicológicas sujeitas a pena de seis meses a dois anos de prisão.
O reconhecimento desse tipo de violência colocou em evidência milhares de casos que estavam invisibilizados. De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, 8.390 casos de violência psicológica contra mulheres foram registrados no Brasil no ano passado. O estado do Rio Grande do Norte não forneceu informações a respeito do crime, e por isso não consta no anuário. Além de a lei ser recente, a dificuldade de identificar esse tipo de agressão influencia diretamente no número de subnotificações desses casos, e a quantidade de mulheres vítimas da violência, como Marianela, pode ser bem maior do que mostram os dados mais atuais.
Hoje, depois de ter consciência do que sofreu, a estudante aprendeu a tirar força das suas cicatrizes. Recuperou a autoestima e a confiança. Se tornou novamente dona dos seus próprios passos. A partir de agora, quem surgir em sua vida, vai ter que dançar conforme sua música. “Eu sei o que eu não quero mais pra minha vida. Eu não quero namorar ninguém assim. Hoje, acima de tudo, quero respeito nos meus relacionamentos”.
COMO BUSCAR AJUDA
Se você estiver sofrendo algum tipo de violência ou conhece alguma mulher que esteja, ligue para a Central de Atendimento à Mulher no número 180. Você também pode entrar em contato com a Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam) de Mossoró/RN através do número (84) 3315-3536, ou no endereço Rua Julita G. Sena, 241, Bairro Nova Betânia.
“Cicatrizes” é uma série especial do TCM Notícia em alusão ao Agosto Lilás, mês de conscientização pelo fim da violência contra a mulher. Em três reportagens especiais vamos contar histórias reais de mulheres que tiveram suas vidas marcadas por agressões. Todos os nomes aqui contidos são fictícios, com o intuito de resguardar as vítimas.
Veja também a primeira reportagem da série “Quando resolvi me libertar, fui aprisionada”.