Para Ana Catarina Castro, 34 anos, a alegria do carnaval da cidade perdeu a graça no domingo, dia 19 de fevereiro. Natural de Apodi, a atendente que hoje mora no Canadá acompanhava a festa pelas redes sociais, quando viu através de fotos um integrante de um bloco carnavalesco que havia pintado o rosto de preto, como forma de se “fantasiar” de rastafári.
“Na ocasião, um dos componentes do bloco o qual eu não consegui identificar, devido seu rosto está totalmente pintado com tinta preta, decidiu se “fantasiar” de pessoa preta, pintando seu rosto e membros superiores, caracterizando assim o blackface”, conta Ana Catarina.
Do inglês “black”, de negro, e face de “rosto”, o blackface é uma prática onde pessoas brancas pintam-se com tinta escura com o intuito de performar uma pessoa preta. Tobias Queiroz, pesquisador e professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, explica que, apesar de naturalizado por muito tempo, principalmente durante o carnaval, o ato se caracteriza como racismo, por estereotipar a negritude. Em geral, a prática destaca traços negativos das pessoas pretas e representa de forma cômica e degradante a humanidade de pessoas negras.
“O blackface tem o objetivo unicamente de degradar a imagem negra, portanto ela é uma prática racista, passível de punição. E, sempre repito e destaco, enquanto crime tipificado o racismo é inafiançável e imprescritível, ou seja, a pessoa que realiza uma ação em que usa a blackface está praticando um crime e ele é o suficiente, juridicamente falando, para a pessoa ser presa a qualquer momento depois do ato criminoso praticado”, afirma Tobias Queiroz.
O professor ainda explica que, não só pintar o rosto com tinta, mas outros tipos de “fantasias” que visam representar determinados grupos minoritários (se vestir de indígena, rastafári ou de mulher) também são formas de reproduzir violências.
“Hoje “fantasias” de indígenas (veja que o termo não é mais “índio”, por reduzir toda uma diversidade de povos a um único termo essencializante), de “rastafaris” (por reduzir a pessoa negra a uma forma menor de humanidade, destacando elementos como “reggaeiros”, “maconheiros” e até de “sujos”, e de “mulheres”, hipersexualizando-as ou diminuindo-as , essas “fantasias” (sempre entre aspas) não ressaltam aspectos do intelecto e da capacidade”, diz o pesquisador.
Por ser uma mulher preta, Ana Catarina se sentiu ofendida com a situação. Tentou entrar com contato com os membros do bloco para falar com a pessoa que praticou o blackface.
“Me senti extremamente ofendida quando vi aquela imagem. Era inacreditável para mim, em pleno Século 21, ver isso ainda acontecendo. Mandei mensagem na tentativa de chegar até a pessoa e que ele entendesse e pedisse desculpas”, diz Ana.
Sem conseguir obter uma resposta, a atendente decidiu buscar a justiça e formalizar uma denúncia. “Pensei: eu não posso deixar isso simplesmente passar, além de ser racismo, de ofender toda uma raça, ainda poderá dar margem para outras pessoas fazerem o mesmo no próximo carnaval ou outra ocasião”.
Ana Catarina registrou um Boletim de Ocorrência e formalizou uma denúncia junto ao Ministério Público do Rio Grande do Norte. A expectativa é ter uma resposta da justiça e assim fortalecer a luta contra o racismo.
“O que eu quero com tudo isso? Combater o racismo velado da nossa sociedade, e de certa forma, por mais que não seja minha obrigação, fazer com que as pessoas entendam que isso não se faz nem de brincadeira. Essa pessoa precisa ser informada de que fez algo errado e no mínimo se desculpar com a comunidade preta”, afirma Ana.
Para Tobias Queiroz, o combate dessas atitudes racistas deve acontecer não só em situações como essa, mas nas que acontecem no dia a dia.
“Estamos lidando com um assunto complexo, denso e que fere esses grupos, então toda forma de combate é bem vinda. Nesse rol, incluo a tomada de responsabilidade dos grupos não minoritários nessa luta, de pessoas brancas para lutar contra o racismo. Esses combates podem vir desde de uma simples repreensão numa conversa numa mesa de bar, até a colocação de atos anti-violentos em práticas, como por exemplo: contratar/convidar e abrir espaços para pessoas não brancas em lugares de poder e de mando; reconhecer seu lugar de privilegiado, ou seja, você nasceu sem essas marcas sociais de violência social”.