Conversar com o mestre Abraão Maximiano, 35 anos, é se perder entre as palavras e as curvas do barro. Sentado ao torno, com avental e mãos já sujas, o artesão conta, enquanto molda a argila, a história de uma tradição familiar que virou arte e sustento.
Natural de Martins, no Alto Oeste Potiguar, Abraão cresceu no Sítio Porção. A comunidade se tornou o lar da família do artesão muito tempo antes de ele nascer, e começou com a presença de mais de 50 famílias que tinham uma característica em comum: a prática do artesanato com barro.
Enquanto os homens se dedicavam à agricultura, as mulheres começaram a fazer peças em cerâmica para complementar a renda doméstica, entre elas a bisavó de Abraão, Isabel Maria. Foram elas as responsáveis por dar o nome à comunidade que carrega ancestralidade indígena.
“Se instalou a comunidade do Porção já por causa delas. Na época, como elas tiravam o barro aqui na serra mesmo, quando chovia enchia de água. Aí diziam: ‘O poço das meninas tá todo cheio de água!’. Assim se criou a comunidade do Porção”, explica.
Para chegar lá, a passagem por uma estrada de terra castigada pela chuva e mata fechada é obrigatória, mas o desafio vale a pena. De longe já é possível avistar os vasos de barro que enfeitam o alpendre da casa. É na oficina no alto da serra que a arte nasce das mãos de Abraão.
A cerâmica foi uma herança passada às gerações- Isabel Maria ensinou a arte para a filha, Maria Paulo; que por sua vez ensinou para Ozelita Maria, mãe de Abrãao.
“De primeiro não tinha escola, não tinha nada, então desde pequenos nós fomos aprendendo a mexer com o barro, fomos fazendo os bonequinhos, os jumentinhos, as panelinhas. Não era para brincar, já era para vender”, relembra Dona Ozelita.
De vestido florido, cabelos grisalhos e sorriso largo, ela se orgulha de ter criado 14 dos 16 filhos que pariu, através da cerâmica. Até hoje segue fazendo o trabalho de forma manual. Assim como a mãe dela, ensinou às crianças como transformar a argila em arte.
Caçula da família, Abraão aprendeu cedo a moldar o barro. A primeira peça que fez foi um jumentinho com o intuito de brincar, mas já naquele tempo, começava a esculpir o espírito de empreendedor.
“Chegou um senhor aqui, eu não lembro o nome, mas ele disse: ‘Eu gostei do jumentinho, vou comprar’, e eu vendi. Na época, se não falha a memória, foi logo na entrada do real, e ele pagou 5. Meu amigo! Eu fiz um fuá com esse dinheiro! Comprei tanta da pipoca, fiz a festa com esses 5 reais.”, lembra o artesão.
Do jumentinho às panelas, enquanto crescia vendendo as peças na feira do Mercado Público de Martins, Abraão aperfeiçoou sua técnica. O trabalho manual só começou a ganhar um toque de industrialização em 2011, com a compra do primeiro torno. A máquina possui um disco que gira, permitindo que o ceramista molde o barro de maneira mais rápida e precisa.
“Comprei o torno para conseguir produzir mais, devido a alta demanda que surgiu naquela época. Eu pensava que seria fácil, via ali no YouTube e achava que ia ser simples. Mas eu não conseguia manusear. Então durante o dia eu trabalhava manual, para cumprir as agendas dos clientes, e à noite ia trabalhar no torno, treinar, até aprender”.
Com todas as técnicas dominadas, o mestre sentiu que era hora de dar à cerâmica a forma de negócio.
O BARRO SE FEZ NEGÓCIO
Quem vê a cerâmica pronta e etiquetada para venda, não imagina quão árduo pode ser o processo de confecção. O barro, retirado de uma profundidade de no mínimo cinco metros abaixo da superfície, é triturado e colocado na água. São necessárias 24 horas de molho para que o material seja amassado, pesado, e armazenado.
O ofício exige principalmente paciência: depois de moldada e polida, a peça de argila descansa durante um dia inteiro, para só então, ir ao forno. São oito horas esquentando de 50 a 650 graus, para depois enfrentar o fogo bruto que chega a 800 graus. Mais um dia é necessário para resfriar a peça e realizar o acabamento. Fazer arte exige tempo e dedicação.
Abraão é o único entre os 14 filhos de Dona Ozelita que decidiu se doar a isto. Viu no barro a oportunidade de negócio, mas também a de não deixar a tradição de quatro gerações da família morrer.
Para isso, era preciso que a cerâmica deixasse de ser apenas barro, que a venda fosse formalizada, e principalmente, era necessário alguém que enxergasse na argila o valor que ela carrega. Foi assim que a parceria do artesão com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) do Rio Grande do Norte se iniciou.
“Em 2012 a gente já estava no mercado, mas não tinha um valor agregado. Foi quando eu encontrei o Sebrae que insistiu na questão empreendedora. Eles me deram a mão e seguem até hoje”, afirma o empreendedor.
Analista técnica do Sebrae de Pau do Ferros/RN, Maria Lúcia foi uma das primeiras profissionais a acompanhar Abraão. O primeiro contato foi por volta de 2006, em uma visita técnica do Serviço.
“O Sebrae estava identificando na região do Alto Oeste quem trabalhava com a produção de panelas de barro. O objetivo era identificar e capacitar pessoas para aprimorarem os conhecimentos e técnicas e em seguida inseri-los no mercado. Na época, o negócio era familiar: a mãe, Abraão e a esposa. Ele e outros artesãos participaram de cursos, mas só Abraão perseverou”, relata Maria Lúcia.
O polo do Sebrae em Pau dos Ferros é responsável pela consultoria de 38 municípios da região, incluindo Martins. Na época, Abraão foi um dos primeiros Microempreendedores Individuais (MEI) da cidade. De acordo com levantamento do próprio Sebrae, entre 2022 e 2023, pelo menos 45% dos profissionais do setor de artesanato do Brasil estavam na categoria MEI ou Microempresa (ME).
O contato com o Sebrae foi um divisor de águas e deu ao mestre a matéria prima que lhe faltava.
“Eu já sabia mexer com o barro, eu queria aprender a administrar. Quanto eu gasto, onde eu quero chegar, como é que eu vou vencer as ações climáticas, já que Martins passa oito meses no ano com 80% de umidade. Quais são os meus inimigos externos e internos, como abordar o cliente, como valorizar o produto no mercado. Eu precisava de toda essa análise”, detalha.
Foram sete anos se dividindo entre a cerâmica e outros trabalhos, além de cursos na gestão de negócios – atendimento ao cliente, plano de negócios, controles financeiros e precificação. O conhecimento acumulado trouxe a certeza de que era possível viver exclusivamente do barro. Em 2019 ele participou do Empretec, principal programa de formação de empreendedores do mundo e ‘Abraão do Porção’ finalmente se oficializou como marca.
“Fizemos com ele consultoria de gestão financeira e consultoria tecnológica, através do programa Sebraetec onde foi feito design de ambiente, design de produto, rotulagem, embalagem”, explica a analista do Serviço.
Assim como o barro, com a ajuda do Sebrae, Abraão foi da argila bruta à cerâmica artesanal.
Hoje, no ateliê que se mistura com a casa, são seis pessoas envolvidas na confecção dos produtos. A esposa Cristina e os filhos mais velhos, Arthur, de 16 anos, e André, de 7, auxiliam no atendimento ao público e na administração, e até a pequena Ester, de 2 anos, já entende a importância da cerâmica. Abraão aprendeu que dividir o trabalho é fundamental para o sucesso de um empreendimento.
“Qualquer empresário de médio e grande porte tem que saber dividir o trabalho. Ou ele delega ordens ou o negócio está morto. Ele vai quebrar a qualquer momento”, avalia.
Da oficina, saem em média 500 peças por dia. A marca ganhou o Rio Grande do Norte e o mundo: além de dezenas de municípios potiguares, os produtos feitos no Porção já foram vendidos para França, Portugal e Estados Unidos.
DE APRENDIZ A MESTRE
Para ele, investir no artesanato é manter viva a cultura do seu povo. Cada panela e vaso feitos dão continuidade à tradição que representa sua origem. Foi com essa ideia que o aprendiz de Dona Ozelita se tornou mestre.
Assim como suas antepassadas, Abraão também ensina aos filhos o manejo com o barro. Mas passar o conhecimento apenas para os descendentes não era o suficiente, ele queria que mais pessoas pudessem partilhar dessa arte.
“Essa questão de ensinar para outras pessoas foi depois de ver que essa cultura realmente foi extinguida no Estado. Fora Martins, são poucos os pólos que fazem cerâmica artesanal no RN, e acaba não atendendo a demanda”.
Além de vender as peças de barro, Abraão começou a participar de feiras e ministrar cursos para introduzir o artesanato na vida de outras pessoas. Atualmente, o ceramista atende seis municípios da região – Messias Targino, Lucrécia, Major Sales, Serrinha dos Pintos, Riacho da Cruz e Portalegre – com oficinas e orientação cultural.
Fez parceria com instituições de ensino como Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) e a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern), e todos os meses recebe uma turma de estudantes que se amontoam no pequeno ateliê para assistir a transformação do barro.
“Atualmente Abraão participa efetivamente em feiras regionais, estaduais (RN e PE), feira internacional (FIART) a Expobrasil em Brasília. O interessante é que através da participação em feiras, ele abre o mercado em muitos estados do Brasil e principalmente no RN”, conta a analista do Sebrae.
Se tornar professor foi a alternativa que Abraão encontrou para lutar contra o seu principal obstáculo atual: faltam mãos para moldar a argila.
“Hoje nosso maior desafio é a mão de obra. Mesmo com a equipe que eu tenho aqui trabalhando, não suporta a demanda. Se a gente fosse trabalhar para dar conta, teríamos que vender o sono”, pondera.
Segundo dados do Diagnóstico do Artesanato Brasileiro e Planejamento Estratégico, nos últimos anos o artesanato chegou a representar 3% do Produto Interno Bruto (PIB) do País e movimentar R$100 bilhões por ano. Ainda assim, de acordo com o Sebrae, o segmento sofre com a falta de políticas públicas para incentivo. Esse diagnóstico também é o de Abraão.
“Quando eu falo que da perda de mão de obra, é pelo incentivo público errado, não existe valorização Pelo potencial que vejo, hoje eu poderia ter um braço em qualquer cidade aqui da região. O cara poderia produzir lá, a peça vir pra cá bruta, e passar pela fase da queima”.
PORÇÃO ADENTRO
Basta um encontro com Abraão para entender que não é do feitio dele pensar pequeno. Mesmo com a marca consolidada no mercado, ele não se dá por satisfeito. Quer ver o Porção ganhar o mundo, e o mundo adentrar no Porção. A próxima meta é reformar o ateliê e ampliar o lugar, com espaço para oficina e sala de aula.
“Percebendo que Martins é uma cidade turística e não volta mais atrás, nós vamos investir nesse projeto, um ateliê com sala de aula. Um investimento em torno de R$150 mil. E vai ser na zona rural, porque foi a comunidade que começou essa história e temos que fazer por onde as novas gerações voltem a produzir como antes”.
Com a obra que está prevista para começar este ano, o artesão espera dobrar o número de visitas no ateliê que hoje recebe em média 250 pessoas por mês. Quer impulsionar não só os negócios, mas o turismo na zona rural de Martins, e assim, gerar mais empregos diretos e indiretos na região. Mas não para por aí.
Além do barro, Abraão também quer resgatar outra tradição de Martins pouco conhecida: a produção de café. O clima serrano permite a cultura cafeeira, que apesar de pouco desenvolvida nas últimas décadas, ainda tem potencial para crescer.
“Eu me perguntava o que eu podia fazer para somar à cerâmica artesanal. Eu sabia que dava para crescer só com a cerâmica, mas ia demorar mais. Então veio a ideia do café para agregar o turismo”.
Ousados, os planos do ceramista não ficam muito tempo no papel. No quintal de casa ele exibe as mil mudas de café arábico que pretende começar a plantar em breve. O objetivo é colocar ainda neste ano um hectare de cafeeiro no solo martinense.
“Nós temos hoje no Rio Grande do Norte algumas cidades caminhando na produção, como Jaçanã, que é um polo de café, Lagoa Nova, Cerro Corá, Portalegre […] Martins entrando nesse mercado, cria uma rota turística de café simples e rápido, entre os outros municípios”.
Mais do que o produto, Abraão quer vender a história de seu povo. Sonha em receber os turistas no Porção, para que eles visitem a nova oficina com cafeteria, e aproveitem para tomar o café enquanto compram artesanato. Ele quer que as pessoas não só conheçam, mas vivam a experiência da tradição que começou com sua bisavó.
“Já imaginou você comprar o Café Porção dentro de um potinho de cerâmica? Isso só vai ter em Martins”, profetiza.
E nessa aventura ele não está só. Novamente conta com o apoio do Sebrae na nova empreitada que pretende iniciar.
“O Sebrae é um indicador de micros e pequenos negócios para o sucesso ou o fracasso. Ou eu vou absorver ali daquela orientação para que eu possa dar um salto, ou eu não vou acolher nada e vou permanecer do jeito que está. Então eu já tinha um sentimento de mexer com o café, porque Martins foi um grande celeiro do café no século passado. Mas eu não sou doido, eu procurei uma orientação. Mais do que nunca, preciso de gente com experiência para fazer acontecer”.
O BARRO QUE CONTA HISTÓRIAS
Apesar de ter surgido na vida de Abraão como renda, há tempos a cerâmica deixou de ser vista por ele apenas como sustento: o barro que ganha formas e curvas conta a história de um povo que carrega a herança indígena.
Hoje, o mestre se tornou uma referência no mercado de artesanato no Rio Grande do Norte, e busca inspirar outros artesãos para manter acesa essa chama da cultura potiguar.
“Ele se tornou referência pela persistência, coragem e determinação que está bem arraigado na pessoa dele. Tornou-se não só artesão, mas palestrante e instrutor, passando e ensinando a técnica aos artesãos de outros municípios, como foi por último a capacitação ministrada por ele em Lucrécia/RN”, afirma Maria Lúcia.
Entre uma gargalhada e outra, Abraão brinca se chamando de “doido”, por querer empreender na área de cultura e apostar no desenvolvimento econômico no interior do Estado. Mesmo com as adversidades e a dor nas costas provocada pelo trabalho de anos, ele não desanima, segue firme no propósito.
“É por causa de Dona Ozelita, se não fosse por causa dela, eu estaria trabalhando em qualquer outra área”, diz Abraão enquanto olha para a ilustração da mãe pintada na fachada da casa.
Além de proporcionar aos pais uma velhice tranquila e aos filhos um futuro promissor, as longas jornadas de trabalho têm outra motivação. Enquanto molda a argila sem ao menos colocar os olhos no torno, o mestre confessa seu maior sonho: quer ser conhecido como um contador de histórias.
“Eu tenho uma meta de ir até os 40 anos trabalhando nesse rojão. Aí depois dos 40 eu quero ganhar dinheiro conversando com o povo, contando história”.
Enquanto esse desejo ganha forma, Abraão segue seu trabalho. Sereno, ele sabe que molda através do barro os novos percursos por onde as próximas gerações também irão caminhar.
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