A psicologia acredita que o que vivemos na infância reflete em nós até o fim de nossas vidas. Até aquelas primeiras memórias que se perdem pelo tempo, acabam construindo o nosso eu do futuro. Foi se inspirando nos médicos da família, que Carolina começou a sonhar com o jaleco branco e o estetoscópio. Queria ser médica quando crescesse para cuidar do próximo. O sonho de menina, no entanto, foi roubado no meio do percurso. Depois de ser vítima de violência sexual aos seis anos de idade, resolveu cursar direito e tomou como missão de vida proteger outras mulheres.
Aos cinco anos, Carolina pensou que a maior dificuldade de criança que enfrentaria seria a separação dos pais. Isso mudou um ano depois, quando o pai apresentou para ela o novo namorado dele. Carolina não se recorda nem do dia em que eles foram apresentados, nem da primeira impressão que teve ao conhecer o padrasto. Assim como todo início de relação, o contato entre os dois foi acontecendo aos poucos. Durante as visitas que ela fazia ao pai, eles costumavam brincar e conversar, foi assim que a confiança entre os dois surgiu, e foi a partir dela que os abusos começaram.
“Como eu era uma criança na época, ele procurou estabelecer uma “ponte” de confiança e amizade comigo, antes de começar os abusos […] Quando eu ia para casa do meu pai, o agressor sempre procurava brincar muito comigo e conversar, levando a posterior os diversos atos de agressões sexuais”, conta Carolina.
Assim como a maioria dos casos de abuso sexual infantil, o agressor dela estava num ambiente onde ninguém – nem a mãe, nem o pai – desconfia que algo desse tipo possa acontecer: dentro de casa. Em todas as oportunidades que o ex-companheiro do pai encontrava a sós com a menina, ela era abusada. Foram seis longos anos vivendo assim. Enquanto crescia, Carolina não conseguia entender o que estava acontecendo. “As agressões começaram quando tinha apenas 6 anos de idade. Como eu era muito pequena eu não conseguia entender toda aquela situação, só vim conseguir entender mesmo, o que estava acontecendo por volta dos meus 11 anos de idade”.
Mesmo depois de entender que o que o companheiro do pai fazia era errado e que ela estava sendo abusada, Carolina não conseguiu sair do ciclo de violência tão facilmente. O agressor a ameaçava constantemente. Caso ela contasse para alguém o que acontecia, ele iria, como forma de vingança, machucar alguém da família da menina. No extinto de proteção, Carolina encontrou uma única saída dolorosa: se distanciar do pai, para assim, se distanciar do abusador.
“Passei por longos 6 anos de abusos, e, para sair desse ciclo, na minha cabeça a única solução seria brigar feio com meu pai, o que ocasionou em uma distância por completo por 6 anos. Eu tomei a decisão de rompimento com o agressor e meu pai com 12 anos de idade […] Nesse intervalo de tempo, muitas foram as vezes que eu quis denunciar as práticas, porém sempre tive o medo das ameaças que o agressor fazia contra minha família, como também me sentia extremamente culpada pela situação”, fala Carolina.
A distância colocou fim nos abusos sexuais. Mas as marcas de uma violência como essa, que cruzaram uma infância inteira, não se apagam. Por maior que seja nossa capacidade de controlo sob a mente para tentar esquecer um episódio ruim que vivemos, hora ou outra, caímos em uma das armadilhas da memória. Sem conseguir falar para alguém o que tinha sofrido, Carolina entrou em uma depressão profunda durante a adolescência.
“Eu não poderia compartilhar essa dor com ninguém, gerando em mim uma pessoa fria, fechada e principalmente com traumas profundos […] A violência afetou e ainda afeta completamente a minha vida, já cheguei a tentar tirar minha própria vida, na ilusão que aquela seria a melhor saída para retirar da minha mente toda aquela culpa, raiva e desgosto, que eu carregava comigo”, relata Carolina.
Quando completou 15 anos, a dor que perdurava há tanto tempo começou a sufocar. Ela já não conseguia mais dar conta de tudo que passava sozinha, e finalmente conseguiu colocar pra fora o que estava entalado na garganta. Carolina contou para a psicóloga a origem do seu sofrimento, e após alguns meses havia chegado a hora de contar para a família. Com a ajuda de uma amiga, ela mandou mensagens de texto para a mãe falando sobre os abusos. Quando entendeu o que se passava com a filha, a mãe de Carolina contou para o pai dela. E ele, ao tomar conhecimento dos acontecidos, colocou um fim no relacionamento com o ex-companheiro imediatamente. Só então o abusador finalmente foi distanciado por completo da família de Carolina.
Em meio ao sentimento de revolta, os pais queriam denunciar a violência imediatamente, buscar na justiça um conforto para o que tinha acontecido. Mas ali, tudo ainda era muito recente, ainda doía muito em Carolina. “Depois que eles descobriram, eles queriam denunciar e acionar a justiça, porém eu ainda não estava preparada mentalmente e assim eles resolveram esperar meu tempo”.
Demoraram alguns anos até que os traumas sofridos como menina, conseguissem dar força para a mulher que ela é hoje. Em 2021 ela finalmente se sentiu confortável e encorajada para denunciar o agressor. No início o processo judicial foi difícil, e foi na família e nos amigos que ela encontrou forças para seguir.
“No início foi muito conturbador, porém recebo diariamente o apoio dos meus familiares e amigos, que me ajudam a passar por todo esse processo que infelizmente ainda machuca, mas que é necessário para que eu possa tirar de vez esse peso e culpa dos meus ombros”, conta a jovem.
Carolina recebeu medida protetiva e o processo segue correndo na justiça. A esperança dela é que futuramente o abusador pague por tudo que fez. Foram alguns anos até que ela começasse a entender que a culpa do que havia acontecido não era dela. Demoraram alguns anos também para que ela conseguisse voltar a se relacionar com o pai. O laço que havia sido rompido aos 12 anos foi reatado, até que no ano passado, ela resolver ir morar com ele.
O desfecho da história de Carolina faz parte do grupo da exceção, e não da regra. De acordo com um balanço recente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, apenas 10% dos casos de violência sexual infantil são denunciados no Brasil. Esse mesmo levantamento mostrou que só nos quatro primeiros meses de 2022, foram registradas 4.486 denúncias de abuso sexual sofridas por crianças e adolescentes no país, cerca de 37 casos por dia. Especialistas acreditam que esses números podem ser ainda maiores, quando consideradas as subnotificações.
Se na questão da denúncia o caso de Carolina fugiu do habitual, em outros pontos se assemelhou a tantas outras histórias de violência sexual infantil: a vítima ser do sexo feminino, e o abuso acontecer no ambiente familiar com alguém conhecido.
Segundo dados de um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgado em junho desse ano, das 35.735 crianças e adolescentes até 13 anos que foram estuprados no Brasil em 2021, 85,5% eram meninas. Ainda de acordo com a pesquisa, na maioria dos casos as vítimas tinha algum vínculo com o autor: 40% dos crimes foram cometidos por pais ou padrastos; 37% por primos, irmãos ou tios; e quase 9% por avós.
A violência que está presente no dia a dia de toda mulher acabou encontrando Carolina mais cedo. Hoje ela diz que a “ferida começou a cicatrizar”, por isso consegue dar seu relato sem voltar à dor do passado. Aquele sonho de criança de ser médica perdeu o sentido. Aos 21 anos, Carolina vê em suas cicatrizes o motivo para lutar por outras mulheres.
“Depois de tantas agressões que eu resolvi que iria usar minha dor para garantir ao máximo de mulher, criança e adolescente, que tamanha violência não venha acontecer com elas também. Foi assim que resolvi cursar direito, onde pretendo atuar principalmente no direito da mulher”, diz Carolina.
COMO BUSCAR AJUDA
Se você estiver sofrendo algum tipo de violência ou conhece alguma mulher que esteja, ligue para a Central de Atendimento à Mulher no número 180. Para denunciar casos de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescente, entre em contato através do Disque 100. Você também pode procurar ajuda no Conselho Tutelar de Mossoró/RN através do instagram @conselhotutelar33.
“Cicatrizes” é uma série especial do TCM Notícia em alusão ao Agosto Lilás, mês de conscientização pelo fim da violência contra a mulher. Em três reportagens especiais vamos contar histórias reais de mulheres que tiveram suas vidas marcadas por agressões. Todos os nomes aqui contidos são fictícios, com o intuito de resguardar as vítimas.
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