Não importa o quanto você ouça falar sobre casos de violência, nem se você sabe dos riscos que corre cotidianamente. Você nunca vai achar que algo do tipo vai acontecer na sua vida, ou na de alguém próximo. Eliza, por exemplo, não imaginou que aos 35 anos, já com maturidade e independência, estaria em uma delegacia para pedir uma medida protetiva, após ser perseguida pelo ex-namorado. Hoje, aos 42, as cicatrizes do que aconteceu continuam presentes na vida dela.
Foi através de uma solicitação de amizade no Facebook que a professora conheceu seu agressor. No início, sem identificá-lo, chegou a recusar o pedido três vezes. Mas após se encontrarem pessoalmente de forma casual, e ele se apresentar, Eliza acabou aceitando a aproximação. “Ele foi extremamente gentil e educado, e então fiquei com vergonha de negar novamente a amizade no Facebook. Ele pediu novamente e eu aceitei. Na época, eu tinha outro namorado. Ele apenas curtia minhas postagens, me elogiava e conversava respeitosamente. Nada de mais”, conta Eliza.
Após algum tempo, o antigo namoro acabou, e o “interesse” aumentou. Ele sabia tudo sobre ela e sobre as pessoas com as quais ela convivia. Apesar de ter achado a situação exagerada, ela estava triste com o fim do relacionamento anterior e acabou permitindo a aproximação dele. Teve esperança que a nova relação, diferente da outra, fosse lhe fazer feliz. E fez. Até as manipulações começarem.
“Nesse momento eu não percebia, mas ele já estava me manipulando, falando sobre “meus erros” em relacionamentos anteriores, e até usando meu filho para conseguir o que quisesse de mim. Comecei a desacreditar de mim mesma. Me sentindo mais pra baixo com elogios disfarçados, estilo: “Você é gorda mais é bonita”, “Essa roupa te deixa mais velha”, “Maquiagem é coisa de palhaço” e por aí vai… Demorei a perceber que, na verdade, eram as falas dele que me deixavam mal”.
Como a maioria das vítimas de violências, Eliza passou pelas agressões sozinha. Se no trabalho sua voz preenchia a sala de aula, em casa o silêncio ecoava. Ela não conseguia confiar em ninguém – família e amigos – para contar o que acontecia. Foram mais de três anos suportando as agressões, até que ela percebesse que precisava colocar um fim no relacionamento e se afastar do ex-companheiro.
“Quando eu percebi que estava numa roubada, e que aquele cara só estava me empurrando pro buraco em todos os sentidos, inclusive financeiro, resolvi acabar o namoro! Simples e fácil! Na verdade, foi libertador”, conta Eliza.
Mas o término não foi um consenso entre o casal, ele não aceitava o fim do relacionamento. As violências psicológicas, que antes eram mais sutis, se tornaram mais sérias. O agressor foi trabalhar na mesma escola que Eliza, e novamente voltou a persegui-la. Foram inúmeras ligações, mensagens, e e-mails. Ele chegou a ir em locais que ela costumava frequentar para vê-la. O estopim foi quando o ex-namorado a obrigou a entrar em um carro à força.
“Quando resolvi me libertar, fui aprisionada! […] Ele me agarrou e me puxou pelo braço de volta pro carro. Me colocou no banco do passageiro e arrodeia para entrar no banco do motorista. Eu fugi do carro quando ele parou num semáforo, ele abandonou o carro e saiu correndo atrás de mim. Foi bem ruim!”, relembra a vítima.
Depois de conseguir escapar desse dia, o medo e o pavor de Eliza ficaram ainda maiores. Era a hora de contar para a família e amigos o que estava acontecendo e pedir ajuda. A professora foi até a Delegacia da Mulher, e finalmente denunciou o ex-namorado. Foi a partir de uma medida protetiva pela Lei Maria da Penha, que a história de violência sofrida começou a ganhar um desfecho. Após audiência judicial, o agressor começou a cumprir as determinações da justiça, e o ciclo de agressões e perseguições foi encerrado.
Sete anos se passaram desde então. O tempo a ajudou a falar sobre o que aconteceu com o sentimento de liberdade, como uma história que não lhe define. Mas a grande questão sobre a violência, é que ela é sentida como ferida por quem sofre. A dor é sanada, os machucados se curam. Mas as cicatrizes acompanham a vítima pelo resto da vida.
O medo de usar as redes sociais e ser perseguida outra vez, fez com que a interação na internet nunca mais fosse a mesma, e durante muito tempo, o medo de sair de casa também se fez presente. Hoje a vida seguiu, mas não como antes. “Hoje estou bem, mas o receio de encontrar outro louco em meu caminho, é grande”.
A história de Eliza se repete todos os dias no Brasil. De acordo com dados do Instituto Patrícia Galvão, por hora, mais de 3 casos de perseguição de mulheres são registrados no país. Quando considerados os casos de agressão física, o número é de 26 mulheres violentadas por hora no Brasil. Em vigor desde 2006, a Lei Maria da Penha – que tem o o intuito de coibir atos de violência doméstica contra a mulher – teve papel fundamental na trajetória da professora. A medida protetiva concedida pela justiça ajudou a proteger Eliza de algo pior.
Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que com o passar dos anos a quantidade de mulheres no Rio Grande do Norte que precisam desse tipo de ordem judicial só cresce. Em 2016, primeiro ano do levantamento do CNJ, foram aplicadas 1.495 medidas protetivas no estado. Em 2020, último dado disponível, foram 3.394 medidas deste tipo. Sem considerar os casos de violência que se perdem pelo meio do caminho, e não chegam às delegacias.
Mudar essa realidade de violência dos mais diversos tipos contra mulheres é uma luta diária, individual, mas principalmente coletiva. Hoje, mãe de uma menina de um ano de vida, Eliza vê o conhecimento como mais um antídoto para esse mal que persiste e afetada gerações e mais gerações de mulheres.
“Preciso que minha menina também saiba de tudo! Preciso que ela saiba se defender e lutar […] É fácil? Não! Mas eu preciso dar a ela armas para que lute quando precise! E acho que a melhor arma é o conhecimento. Que ela saiba se defender e procurar abrigo em qualquer situação”, afirma Eliza.
COMO BUSCAR AJUDA
Se você estiver sofrendo algum tipo de violência ou conhece alguma mulher que esteja, ligue para a Central de Atendimento à Mulher no número 180. Você também pode entrar em contato com a Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam) de Mossoró/RN através do número (84) 3315-3536, ou no endereço Rua Julita G. Sena, 241, Bairro Nova Betânia.
“Cicatrizes” é uma série especial do TCM Notícia em alusão ao Agosto Lilás, mês de conscientização pelo fim da violência contra a mulher. Em três reportagens especiais vamos contar histórias reais de mulheres que tiveram suas vidas marcadas por agressões. Todos os nomes aqui contidos são fictícios, com o intuito de resguardar as vítimas.