Botas de PVC nos pés, boné na cabeça, materiais a postos. Para Pablo Gondim dar início a mais um dia de trabalho só faltava um pequeno detalhe: ligar o rádio e sintonizar na estação favorita. Aos 39 anos, o pequeno produtor rural cuida da propriedade na Baixa do Tatu, em Upanema/RN, a quase 60 km de Mossoró/RN, e tira da produção do leite o seu sustento.
Pablo nasceu e cresceu na zona rural do município. Aprendeu o ofício de cuidar dos animais com os pais, e há 13 anos decidiu investir no seu próprio pedaço de terra e vacas. Segundo ele, “nasceu tirando leite”, por isso não se imaginava trabalhando com outra coisa que não a agropecuária.
Mais de três décadas de trabalho lhe renderam mãos calejadas, mas também muita experiência para ser capaz de se reinventar e melhorar seu negócio. “Muitas vezes as pessoas pensam que a agricultura só é feita de coisas das antigas, mas hoje a gente pode viver uma agricultura com tecnologias e inovações, e eu estou sempre procurando inovações. Eu tenho algumas tecnologizinhas, são pequenas, mas são úteis”, diz o produtor.
Além de poço e irrigação para plantar a ração das vacas, nos últimos anos Pablo apostou em ordenhadeiras mecânicas e em um tanque de resfriamento para armazenar o leite. Isso não só amenizou as dores que sentia nas mãos por causa do trabalho repetitivo, como também reduziu o tempo de ordenha para 40 minutos, aumentando a produção para 150 litros de leite por dia.
Mas se por um lado essas mudanças ajudaram a otimizar a produção e facilitaram a rotina de trabalho, por outro, elas passaram a pesar no bolso. Não demorou muito e a conta de energia começou a se tornar uma preocupação constante. Mais uma vez Pablo precisou olhar para o futuro para resolver o problema. A solução não caiu do céu, mas veio de lá: o sol.
UMA APOSTA CERTEIRA
O sol nosso de cada dia, que durante os tempos de estiagem castiga tanto o sertão com a seca, passou a ser visto como um aliado. Há dois anos e meio o telhado antigo da casa do sítio passou a dividir o espaço com 16 placas fotovoltaicas. A ideia de investir na energia solar surgiu através de conversas com primos que já usavam em suas casas. Na época, a energia elétrica convencional passava por constantes alterações nas bandeiras tarifárias, e Pablo enfrentava todos os meses a incerteza de quanto iria pagar pelo consumo.
“Eram muitas tarifas na energia elétrica, eu fiquei muito apavorado. Até que chegou essa opção de energia solar. As empresas chegaram, explicaram, e aí nós fizemos o projeto, fechamos o negócio, e há dois anos e meio está gerando”.
Enquanto enche o tanque com o leite da primeira ordenha do dia, Pablo conta que teve que ter coragem para fazer com que a energia solar se tornasse uma realidade viável na propriedade. O pai, que também é produtor, e a esposa, que divide a administração do negócio com ele, ficaram com o pé atrás no início.
“Meu pai é desse povo antigo, que estranha essas tecnologias, ficou logo desconfiado. E como o financiamento seria em seis anos, com uma parcela num valor um pouco mais alto do que a gente tava acostumado a pagar, minha esposa ficou preocupada. Me perguntava se valia mesmo a pena”, relembra.
Não demorou muito até que ele pudesse provar que estava certo. A menos de quatro anos para terminar de pagar o financiamento, Pablo viu a aposta dar retorno. A energia que as placas instaladas na propriedade geram é suficiente para todo o consumo da propriedade rural, da casa na zona urbana, e em mais duas residências dos pais dele.
“A energia eu uso principalmente para o dia a dia do sítio. Eu tenho a forrageira, o tanque de resfriamento de leite e poço com a bomba, os dois ligados 24h, tem as luminárias, faço a irrigação. Nós somos dependentes da energia para trabalhar, e a solar tem suprido toda a minha necessidade”, diz Pablo Gondim.
Na Baixa do Tatu, passado e futuro se encontram. Escorado no arame farpado que cerca o pasto das vacas, o produtor mostra na tela do celular como tem “ganhado dinheiro” com a energia. Segundo ele, durante os meses de inverno, quando o sol dá uma pequena trégua ao solo potiguar, a geração mensal das placas é em média 850 Quilowatt (kw). A compensação acontece durante o verão, quando a geração sobe para uma média de 1018 kw por mês. Quando coloca a conta na ponta do lápis, hoje a economia que ele tem é de mais de 100%.
À LUZ DA OPORTUNIDADE
Se para Pablo a energia solar foi um meio de economia, para o engenheiro Christian Menezes, 26 anos, foi uma oportunidade para mudar de vida. A primeira vez que ouviu falar do assunto foi em 2016, quando ainda estava na faculdade. O discurso do palestrante em um seminário sobre energias renováveis afirmando que a solar seria o mercado em ascensão nos anos seguintes plantou uma sementinha na cabeça do jovem, que veio a germinar três anos depois.
“Em 2019, quando eu terminei a faculdade, um rapaz me chamou para trabalhar numa empresa como engenheiro civil, fazendo projetos de estruturas de solos para usinas de energia solar. Eu entrei na empresa, comecei a fazer os projetos e eu fui pegando o jeito da coisa, mas eu tinha muita vontade de colocar o meu próprio negócio”, conta Christhian Menezes.
Foi em 2020 que o engenheiro fechou uma sociedade com um amigo, e juntos eles abriram o que hoje é a Infinity Solar. A empresa, que foi a primeira de energia solar do município de Umarizal/RN, começou com apenas seis clientes locais – comerciantes que na época da pandemia buscavam diminuir gastos para manter os negócios. Aos poucos, com o retorno positivo e o bom e velho “boca a boca”, Christian conseguiu ampliar o atendimento para outras cidades circunvizinhas e até outras regiões.
“O pessoal começou a se interessar e foi procurando tanto eu, como o meu sócio. Procuravam bastante por curiosidade, até porque os orçamentos eram sem compromisso. A gente fazia a simulação do orçamento no banco e o pessoal se interessava”, explica o engenheiro.
Em dois anos a procura pela instalação das placas cresceu tanto que no início de 2022 ele chegou a vender 20 projetos em um único mês. Hoje, além da sede em Umarizal, a empresa também tem uma filial em Caicó/RN, para atender os municípios do Seridó. A clientela também mudou durante esse tempo, os projetos deixaram de ser apenas comerciais, e passaram a ser também residenciais e rurais, e de todas as classes sociais.
“O pessoal de baixa renda tinha muito medo até de pesquisar o orçamento, porque acham que é algo muito caro. Mas quando a gente vai lá apresenta a simulação, que a parcela fica parecida com a conta de energia, eles se interessam. Hoje o pessoal do interior tem mais facilidade de colocar, do que o pessoal das grandes cidades”, diz Christhian.
Para Rodrigo Mello, diretor do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial do Rio Grande do Norte (SENAI-RN), a popularização desse tipo de fonte aconteceu justamente porque o valor da conta de energia passou a incomodar todos os potiguares, independentemente da renda.
“Esse é um setor extremamente presente na vida das pessoas porque o assunto energia ficou caro dentro do orçamento familiar. E a energia a partir da fonte solar descentralizada passou a ser uma oportunidade, pois com o próprio valor que você paga a conta de energia, você é capaz de pagar a instalação dos equipamentos e depois de algum tempo, quatro, cinco, seis anos, você passa a não ter mais uma conta de energia. E todos nós sabemos o impacto que isso tem no orçamento familiar”, fala Rodrigo Mello.
Esse crescimento identificado pelo SENAI-RN e pelo jovem empreendedor pôde ser constatado através de dados da Associação Potiguar de Energias Renováveis (APER-RN), que apontam que em só em 2022 as conexões da energia solar distribuída no Estado cresceram 107,9%, um número acima do Nordeste (96,7%) e também da média nacional (84,8%). A APER também constatou que atualmente a energia solar está presente em todo o Rio Grande do Norte – há pelo menos um sistema fotovoltaico gerando energia limpa em cada um dos 167 municípios potiguares.
Foi enxergando o potencial da solar não só nas casas, mas na indústria que a Federação das Indústrias do Rio Grande do Norte (FIERN) passou a investir no setor. Através do Centro de Tecnologias do Gás e Energias Renováveis (CTGAS-ER) do SENAI-RN, dezenas de profissionais são formados para atuar no setor de energia solar. Além da mão de obra, o Sistema têm feito a diferença na área da pesquisa, desenvolvimento e inovação através do Instituto SENAI de Inovação em Energias Renováveis (ISI-ER).
O incentivo à ciência voltado para o mercado contribuiu para a elaboração do primeiro Atlas Eólico e Solar do RN, lançado pelo Instituto do SENAI em um trabalho colaborativo com o Governo do RN, no final de 2022. O documento aponta “onde estão as melhores áreas no Estado para energia eólica e solar. Traz textos, mapas e outras imagens com informações inéditas sobre o potencial do estado e regiões mais promissoras para investimentos em terra, no mar e, no caso da energia solar, também em lagos, açudes e barragens monitorados pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA)”.
Em relação ao potencial solar, o Atlas apresentou uma capacidade instalável de 82 Gigawatt pico (GWp), sendo esse valor, considerando apenas 10% dessas áreas aptas. De acordo com Mariana Torres, coordenadora da pesquisa realizada pelo Instituto SENAI, os números demonstram a capacidade do RN de se destacar nacionalmente na produção da energia renovável.
“Há significativo potencial ainda a ser explorado para a geração solar e falando aqui em grandes usinas para exploração da geração centralizada (que inclui projetos acima de 5 Megawatts (MW), como usinas de grande porte). Para se ter uma ideia, temos hoje 9,64 Gigawatt (GW) de capacidade instalada no Brasil em usinas de grande porte, ou seja, o RN tem condições de gerar mais de 8,5 vezes a capacidade instalada atual do Brasil”, explica a pesquisadora.
Para a geração distribuída, a frente do setor que engloba sistemas de geração de energia para residências e estabelecimentos comerciais e industriais de micro, pequeno e médio portes, o Atlas mostra que potencial potiguar também é considerado “abundante”. O potencial de capacidade instalável é de mais de 718 Megawatts pico (MWp), o dobro do que, em 2022, está instalado no RN.
A ENERGIA QUE ALIMENTA A AGROPECUÁRIA POTIGUAR
Dados mais recentes do Observatório de Energia Solar feito pela APER com informações da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) apontam que até junho deste ano o RN já teve um crescimento de energia solar distribuída de 26,2%. Atualmente são mais de 47 mil sistemas fotovoltaicos conectados à rede potiguar. Desses, cerca de 81% são de consumo residencial, 15% são comerciais e 3% são rurais.
Apesar do número tímido, o consumo rural vem aos poucos se destacando, e principalmente fazendo a diferença no campo. Christian Menezes afirma que o número de clientes que trabalham com agropecuária cresce todos os dias e eles variam desde pequenas até grandes instalações.
“Para produtores de pequeno e grande porte compensa demais, ainda mais na região da gente. Como aqui não tem chuvas constantes eles precisam muito da irrigação que demanda muita energia. Tenho um cliente de Apodi que a produção dobrou, porque o tempo de irrigação dele mais que dobrou quando ele colocou as placas”, explana.
Assim como Christhian, Paulo Marcelino também viu acontecer essa migração feita pela agricultura do uso da energia elétrica convencional para a solar. Dono da Infinita Energia Solar, hoje ele atende principalmente Mossoró e as cidades da Região Oeste, como Baraúna, Apodi e Tibau.
A empresa foi a realização de um sonho de Paulo, que há anos desejava ter o próprio negócio. “Eu sempre tive um sonho de empreender, mas não tinha um modelo de negócio definido. Quando vi uma propaganda sobre empreender no ramo da energia solar, despertou meu interesse e resolvi investir em especialização”, conta.
Os primeiros clientes foram os parentes e amigos. “Um deles me deu a oportunidade de fazer o primeiro projeto. Depois dessa “prova social” o negócio começou a ganhar tração”.
Há três anos no ramo, o empreendedor viu a energia solar, antes pouco explorada, passar a ser conhecida e cada vez mais concreta no mercado. Por isso não se assustou quando começou a ser procurado para realizar grandes projetos, como o do empresário Francisco de Assis.
NO SOL DO OESTE
Natural da Paraíba, Francisco de Assis, ou Didi, como é chamado pelos mais próximos, veio para o Rio Grande do Norte em 1992. Na Maísa, zona rural de Mossoró, ele e toda a família começaram a trabalhar em fazendas que faziam polo de agricultura da região.
Com o passar dos anos, o solo do Oeste Potiguar se mostrou fértil para Didi. “Em 94 vim para Baraúna e aqui comecei minha própria família. Em 2007 comecei a plantar, com apoio de amigos, em sociedade, até abrir minha própria empresa, onde sigo até hoje. Em 2019 consegui adquirir o terreno que trabalhei em 2001, que sempre foi um sonho meu. Hoje minha produção vem, em sua maior parte, desse terreno, com a produção de banana”, relata Francisco de Assis.
Com 48 anos, Didi divide a administração da F.A. Frutas com o filho mais velho Fernando Costa. Juntos, eles buscam diariamente alternativas para melhorar a produção de fruticultura que garante o sustento da família deles e da de cada um de seus funcionários.
Foi no ano passado que a imensidão verde dos pés de bananeiras cheios de cachos abriram espaço para as placas fotovoltaicas, que mudaram a paisagem. “Após conversar com amigos e ver depoimentos, vi a oportunidade do investimento em energia solar. Vi que era um bom investimento, em base que na agricultura um dos maiores custos é a energia elétrica, e que só aumenta”, diz o empresário.
Eles instalaram a primeira usina de geração, e em poucos meses ampliaram a geração em outras usinas próprias. Hoje cerca de 80% da necessidade elétrica da fazenda de fruticultura vem da geração própria de energia solar. Didi conta que a economia financeira foi sentida de imediato, com redução de 85% a 90% do que era gasto mensalmente com a energia elétrica.
“Consegui ter uma diminuição de custos com a energia elétrica, e estou investindo em uma energia que é minha, atendendo quase toda minha necessidade elétrica. Estou extremamente satisfeito com a decisão de investir em energia solar, e com a eficiência do sistema que beneficia não apenas minha residência, mas também minha empresa de fruticultura”, fala Francisco de Assis.
Mesmo sem saber, Didi investiu em um futuro mais que promissor. De acordo com o Atlas de Energia e Solar do RN, uma das áreas mais promissoras do Estado para o desenvolvimento da energia solar é a região de Mossoró e seu entorno.
“Essa região detém mais de 50% (45,3 GW) da capacidade instalável do RN e sem falar ainda da geração distribuída (frente do setor que engloba sistemas de geração de energia para residências e estabelecimentos comerciais e industriais de micro, pequeno e médio portes) e da capacidade que esse segmento dispõe ainda para explorar, o que também é bastante significativo. Sem dúvidas, a energia solar é um tipo de energia bastante promissora e temos ainda muito para crescer nesse segmento”, afirma Mariana Torres, pesquisadora do ISI-ER do SENAI-RN.
Ainda segundo dados da APER de julho deste ano, Mossoró se encontra em segundo lugar no ranking de conexões de energia distribuída no RN. O município possui 16,7% das conexões do Estado, perdendo apenas para a capital Natal, que acumula 21,6%. No TOP 10 ainda aparecem Apodi, Assú e Pau dos Ferros, confirmando a força do sol do Oeste Potiguar.
A VISÃO DO FUTURO
E se engana quem acha que o investimento feito por Didi na F.A. Frutas visava apenas o financeiro. Quem sobrevive da agricultura sabe que a relação com a terra precisa ser recíproca – não é só plantar e colher, mas também cuidar dos recursos que a natureza oferece para o homem.
“O crescimento que a energia solar teve no último ano mostra o quão boa ela é, que veio para ser parceira do produtor, da empresa multinacional ao pequeno produtor. Isso tudo além da sustentabilidade, de ser uma energia limpa e que preserva o nosso meio-ambiente”, explica Francisco de Assis.
Para Rodrigo Mello, investir na geração própria se torna uma característica especial do agricultor do Rio Grande do Norte, especialmente do agricultor da região de Mossoró que é de pequeno porte, e vai além do benefício econômico.
“Isso traz benefício econômico, mas o produtor também está contribuindo para um mundo mais limpo, que é uma coisa que hoje gera melhor competitividade nos produtos ofertados à sociedade. Ele causa também uma perspectiva de reconhecimento e diferenciação do seu produto, pois ele está sendo produzido utilizando energia mais limpa”, afirma o presidente do SENAI-RN.
A vantagem de ter um produto feito a partir de uma energia renovável também é um diferencial que Pablo Gondim se orgulha de ter. O leite que sai da sua pequena fazenda todas as semanas chega até Jucurutu/RN, e lá se transforma em queijo e outros derivados que ganham o Estado. A energia solar gerada na propriedade é uma das responsáveis pelo sabor e qualidade do insumo, e por isso, o produtor levanta as mãos ao céu para agradecer, quase como em uma oração.
“Eu nasci no sítio, na agricultura, mas eu sempre tive uma visão de sempre procurar conhecimento para melhorar a nossa fonte. A gente do campo, mesmo pequeno, também pode adquirir tecnologias, assim como grandes empresas. Com quem eu converso eu aconselho a usar, porque eu to desfrutando”, afirma.
Apesar de pequeno quando comparado a outros agropecuaristas, Pablo não se intimida com as tecnologias. Vê o futuro em cima do telhado da casa meio rebocada, assim como vê na fazendinha de brinquedos montada pelo primogênito Pablo Filho ao lado da cisterna de água. Os planos dele são expandir o investimento e aumentar a quantidade de placas. O desejo é garantir sempre energia em abundância daqui pra frente.
“Agora o radiozinho passa o dia todo ligado, e vai continuar assim”, diz Pablo aos risos.
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