Como é a rotina da sua casa num sábado pela manhã? Dia de faxina? Dia de passeio? Na casa da mossoroense Ana Carolina Ferreira de Oliveira, independente dos planos, a rotina incluía os cuidados com os dois filhos. Acordar cedo, preparar um café da manhã, e quem sabe, realizar a refeição vendo desenho com as crianças.
Naquele sábado, 16 de julho de 2022, o cansaço pesou mais nos ombros de Ana Carolina, já que na noite anterior ela havia dado o primeiro dia de expediente no novo trabalho. Aos 22 anos, a jovem tinha conquistado naquela semana o primeiro emprego em uma pizzaria, e sentia o alívio de poder garantir sua independência financeira. Aquele seria o início de uma nova fase, mas não foi.
Fatidicamente naquele sábado Ana Carolina Ferreira se tornou parte de uma estatística que cresce ano após ano no Brasil: foi vítima de feminicídio cometido pelo ex-companheiro.
A separação do casal havia acontecido cerca de 15 dias antes do crime. Franceildo Cardoso da Silva, pai dos filhos de Ana Carolina, não aceitava o fim do relacionamento, e ameaçava a ex. No dia do ocorrido, ele chegou na casa de Ana, no Bairro Aeroporto, em Mossoró, por volta das 8h, e entrou na residência após a filha do casal abrir a porta.
De acordo com a investigação da Polícia Civil do RN, Franceildo atacou a ex-mulher com mais de 30 golpes de faca na frente das crianças, e em seguida fugiu do local. Vizinhos ouviram os gritos de Ana Carolina e pediram socorro. Quando a Polícia Militar chegou, a vítima ainda estava com vida, mas veio a óbito logo em seguida.
Franceildo só foi preso quase dois meses depois do crime, após se entregar à polícia. O caso foi a júri popular em março deste ano, quando ele foi condenado a 24 anos de prisão pelo crime de feminicídio.
A VIOLÊNCIA EM DADOS
De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, no ano passado o Rio Grande do Norte registrou 16 feminicídios. Uma redução de pouco mais de 20% quando comparado com 2021, que teve 20 casos.
Apesar dessa queda, outros tipos de violência contra a mulher apresentaram alta nos índices. O número de tentativas de feminicídios no RN cresceu 26,2% entre 2021 e 2022. Já os casos de violência doméstica aumentaram 37,3% no mesmo período – foram 1.988 contra 2.740 casos.
Em Mossoró, a violência contra a mulher também é uma preocupação constante, e os números seguem a tendência. De acordo com a Patrulha Maria da Penha da Guarda Civil Municipal, nos últimos dois anos e seis meses, 522 mulheres foram atendidas pela equipe. Para Lilian Cynthia, guarda da Patrulha, o número é considerado alto.
“Esse número é considerado alto para Mossoró, tendo em vista que esse não é o número total, já que nós temos a Patrulha da Polícia Militar, tem as mulheres que denunciam diretamente na Delegacia da Mulher, e tem, com certeza, um número bem maior de mulheres que não chegaram a denunciar. Então esse número de 552 mulheres são apenas as que já denunciaram e são acompanhadas pela Guarda. É um pequeno número diante do número real dos casos de violência doméstica que temos na cidade”, diz Lilian Cynthia.
HISTÓRIAS INTERROMPIDAS
Quando Ana Carolina começou a se relacionar com seu assassino, tinha por volta de 13 anos. De acordo com a família, ela nunca relatou situações de violência física. Mas a violência psicológica existia na vida do casal.
“Ela nunca aparecia com hematomas, mas a violência psicológica era suficiente. Ela não conseguiu conversar com a gente sobre isso. Ele costumava tomar o celular dela, então tinha falta de privacidade, a falta de confiança”, contou a irmã da vítima em uma entrevista ao Jornalismo TCM.
Essa história da mulher que é violentada e morta pelo companheiro é uma das que mais se repete entre os casos de feminicídio. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, 53,6% dos feminicídios no Brasil em 2022 foram praticados pelos companheiros das vítimas. Em 19,4% os autores são ex-companheiros, que em geral, não aceitam o fim da relação.
Esse foi o caso de Ana Carolina, e também de Vanderlândia Lima de Queiroz. Aos 27 anos, a mulher que era mãe de uma menina, foi assassinada pelo ex-companheiro, Diego Rodrigues Marques, com disparos de arma de fogo. Segundo as investigações da polícia, no dia 27 de abril de 2022 ele teria levado Vanderlândia para uma estrada carroçável, no Bairro Planalto 13 de Maio, em Mossoró, e efetuado disparos de arma de fogo. A vítima morreu no local.
Diego só foi preso em julho de 2022, após se entregar em uma delegacia. A condenação de mais de 20 anos veio em abril de 2023. No júri, o acusado negou ter cometido o crime, mas segundo o Ministério Público do RN, o réu foi o autor do feminicídio, motivado também pela insatisfação do fim do relacionamento.
Em seu último post no instagram, Vanderlândia escreveu que “o segredo da vida não é ter tudo que você quer, e sim amar tudo o que você tem!”. Apesar das dificuldades, a jovem contava com o apoio e amor da família, principalmente das irmãs, que cuidavam dela e da filha. Vítima de um crime bárbaro, Vanderlância teve sua história interrompida: não conseguiu conquistar tudo que queria e nem dedicar amor ao que tinha.
O mesmo aconteceu com a história de Ana Carolina. Desfrutando o início da juventude, estava feliz com a conquista do primeiro emprego. O dinheiro que recebeu na noite anterior ao crime foi entregue para a mãe com um pedido: “Ela me deu e disse para comprar de fralda para o filho… Quando a gente é mãe só pensa nos filhos…”, lamentou a mãe da vítima.
ÓRFÃOS DO FEMINICÍDIO
Para a mulher que é vítima de feminicídio, o crime acaba com uma trajetória. Para a justiça, o caso é encerrado após o julgamento e condenação do autor do crime. Mas e para quem fica? Mesmo após a resolução, a dor de perder alguém assombrar por muitos anos as pessoas que são vítimas de indiretas de uma violência intencional.
“O impacto dessa violência perpassa múltiplos aspectos da vida dos sobreviventes do crime, pois vivenciar atos violentos contra a vida de algum ente ou pessoa querida, gera traumas emocionais e afetivos que podem perdurar por toda sua vida. Os traumas emocionais e afetivos têm grande potencial de impactar de forma negativa a percepção de construção de vida, as relações interpessoais e intrapessoais, assim como também podem potencializar ou intensificar sintomas de transtornos psicológicos, tais como ansiedade, depressão ou outros de maior gravidade”, informa a psicóloga Juliana Fernandes.
Essa “orfandade” forçada causada pelo feminicídio afeta todo o ciclo familiar da mulher assassinada, mas principalmente os filhos, que na maioria dos casos perde a mãe, e também o pai, quando ele é o agressor.
“Percebeu-se que além da vítima direta, que no caso é a mulher, nós temos uma série de vítimas indiretas, secundárias, ocultas. São principalmente os filhos da mulher que foi assassinada. Essas crianças vivem um desarranjo familiar, e normalmente uma tia, uma avó passam a assumir esse papel de mãe. E quando o feminicída é o pai, há uma perda total parental, eles sofrem bastante, e podem apresentar isolamento, transtorno de estresse pós-traumático, depressão, sinais de luto prolongado”, explica Vinicius Lins, promotor de Justiça.
Como órgão que defende os direitos da população, o Ministério Público atua tradicionalmente como acusador em casos de feminicídio. Promotores acompanham a investigação e o processo até o julgamento e buscam responsabilizar o autor do crime. Mas em julho do ano passado, o MP entendeu que esse tipo de violência perpassa as vítimas, por isso se fez necessária a criação de Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência Letal e Intencional (NUAVV).
O objetivo do NUAVV é facilitar o acesso à informação, à orientação jurídica, à reparação e ao acompanhamento psicológico, social e de saúde de vítimas indiretas de uma violência. “O NUAVV acolhe famílias. Nesse acolhimento, que é qualificado, identifica as necessidades e se for o caso, encaminha para os serviços públicos de saúde, aciona o Sistema Único de Assistência Social”, diz o promotor.
O primeiro Núcleo foi instalado na sede do MPRN em Natal. Em um ano, a equipe do NUAVV atendeu 265 vítimas indiretas. Foram 161 buscas ativas, 65 encaminhamentos de saúde e 132 atividades jurídicas realizadas pela equipe. Com o resultado positivo, o Ministério Público decidiu expandir o serviço, e em julho deste ano, inaugurou o NUAVV em Mossoró, segunda maior cidade do Estado.
Além da demanda espontânea, a equipe também realiza uma busca ativa das famílias, para ajudar no acesso aos serviços, e assim, tentar amenizar os danos causados pela violência. Um trabalho que para Vinicius Lins, vai além da obrigação burocrática do Ministério Público, envolve uma questão de humanidade.
“Há uma grande questão humanitária. É uma questão de direitos humanos proteger aqueles que viviam com a pessoa que perdeu a vida. Essa assistência às vítimas faz com que o MP consiga se aproximar dos familiares, dar transparência sobre os serviços que o MP tem, e auxilia em alguns casos a polícia. No feminicídio normalmente não há grande complexidade no esclarecimento, mas quando acontece, cabe ao Ministério Público ser a voz das vítimas no sistema de justiça”, finaliza o promotor.
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