“Minha mãe disse que tudo que é vivo tem que nascer de algum jeito. Existem algumas plantas que nascem de sementes, como a da laranja, a manga e o abacate que a gente come, e se você plantar a semente, nasce outra árvore, só que ela nasce pequenininha e vai crescendo devagar. Mas como podia alguém não ter nascido da barriga de sua mãe?”. Esse trecho foi retirado do livro infantil “O menino que não nasceu da barriga da mãe”, da escritora Carmem Lucia Eiterer. Essa é uma das histórias que Vanessa C. A. de Souza Borba utiliza para explicar para o seu filho, G.L., que ele não nasceu da sua barriga.
Vanessa tem 46 anos, é servidora pública e cresceu em Recife visitando uma escola de freiras onde sua mãe, hoje com 72 anos, foi criada. Ela sempre entendeu a experiência da mãe como uma história de resiliência. Essa familiaridade com a ideia de acolhimento a acompanhou ao longo da vida e influenciou seu desejo de formar uma família por meio da adoção. Desde cedo, Vanessa compartilhou com o marido, Carlos Gurgel Borba, a intenção de adotar. Após enfrentar a perda de uma filha e uma gravidez ectópica, que quase lhe custou a vida, ela e Carlos decidiram dar continuidade ao plano de adotar. Mesmo com a chegada de T. C., seu filho biológico, o sonho da adoção permaneceu firme.
Pensar em adoção é imaginar uma expressão de amor, cuidado e acolhimento, mas a experiência é mais profunda e complexa do que parece. Por trás da escolha da adoção, muitas mulheres vivem intensamente uma etapa de dor e entrega que o Projeto Acolher busca amparar. Voltado ao acolhimento de mulheres que enfrentam a difícil decisão de entregar seus filhos para adoção, o projeto oferece suporte jurídico e psicológico, respeitando a escolha e preservando o sigilo. Este trabalho facilita o processo legal e ainda se posiciona como um amparo em uma sociedade que muitas vezes marginaliza essas mulheres.
A Resolução 485, publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), vem fortalecer esse acolhimento, ao garantir que gestantes que pretendem entregar seus filhos para adoção sejam encaminhadas, sem constrangimentos, à Vara da Infância e Juventude, contando com apoio contínuo da rede de proteção. Segundo essa nova legislação, a entrega voluntária deixa de ser um ato de abandono e passa a ser reconhecida como uma escolha respaldada pelo Direito, para que mães e crianças encontrem o melhor caminho sem julgamento.
A trajetória feita pela criança até chegar ao lar foge do convencional, mas tornou-se mais seguro graças ao Projeto Acolher, do Ministério Público do Rio Grande do Norte. A iniciativa começou em 2019 a partir das alterações legislativas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que é o documento que estabelece a Doutrina da Proteção Integral dos Direitos da Criança. A última alteração do ECA foi a Lei 13.509/2017, que trouxe mudanças para dar mais celeridade aos procedimentos de adoção.
Com essa estrutura, o Projeto Acolher facilita o avanço da fila de adoção em Mossoró, motivando novas famílias a entrar no processo. Ao contrário do que muitos pensam, a adoção legal proporciona um vínculo seguro e permanente. O Ministério Público cumpre o papel de fiscalizador para garantir que cada criança seja encaminhada a um lar acolhedor e estável.
As audiências, realizadas até mesmo em maternidades, contam com o apoio de instituições de saúde e profissionais do Ministério Público, Defensoria Pública e da Vara da Infância, garantindo total segurança jurídica. “Lembrando que o projeto não visa retirar a criança da mãe, mas dar um apoio àquela mulher, nesse momento tão difícil, em uma decisão tão importante que é de entregar ou não sua criança para adoção,” explica o Assessor Jurídico Ministerial, da 12ª Promotoria da Infância e Juventude de Mossoró, Ivonzéliton Leite Nunes.
Com o Projeto Acolher, a fila de adoção em Mossoró ganha celeridade. Hoje, a cidade conta com mais de 70 pretendentes, mas enfrenta desafios em relação ao perfil das crianças disponíveis para adoção. Embora a preferência seja por crianças pequenas, muitos acolhidos têm idade mais avançada ou são grupos de irmãos, exigindo um perfil adotante mais flexível. Casais homoafetivos, solteiros e pessoas que buscam formar família estão entre os que mais aderem ao processo.
O Ministério Público participa ativamente em todos os momentos, garantindo que o processo seja seguro e justo. O Projeto Acolher e a entrega legal de crianças mostram que, com um sistema de apoio completo, a adoção em Mossoró pode ser ágil, protegida e verdadeiramente transformadora.
Em 2012, Vanessa deu entrada na fila de adoção no fórum de Mossoró. Os anos passaram, e o processo de espera se estendeu, até que, em julho de 2019, ela recebeu a tão esperada ligação do Assessor Jurídico Ministerial, Ivonzéliton Nunes. Ele comunicou a chegada de G. L, trazendo um misto de emoções para a família. “Naquele momento, tive uma enxurrada de sentimentos, pois, após anos de espera, meu filho havia chegado”, conta Vanessa. Por coincidência, no mesmo dia, ela descobriu que estava grávida, mas essa gestação não perdurou.
A chegada de G. L. foi intensa e repleta de amor. O processo de adaptação contou com o apoio de amigos e familiares, que ajudaram a preparar o enxoval em meio à correria. O Núcleo Integral de Apoio à Criança (NIAC), onde Vanessa assinou os documentos e teve a primeira audiência de guarda definitiva, é um espaço simbólico, onde as audiências ocorrem ao ar livre, debaixo de uma mangueira, em um ambiente acolhedor e simples.
A criação de G. L., que hoje tem 5 anos, e T. C., que tem 11, é marcada por transparência e naturalidade. Desde pequeno, Vanessa conversa com G. L. sobre a adoção. Ela lê para ele o livro “O menino que não nasceu da barriga da mãe” e, de maneira delicada, explica que ele chegou até ela por um caminho diferente. G. L. já entende que, enquanto Vanessa esperava por ele, uma “outra mãezinha” ofereceu cuidado antes que pudesse finalmente integrar a família Borba.
A experiência de Vanessa reflete os valores defendidos pelo Projeto Acolher. Para as mulheres atendidas pelo projeto, a decisão de entregar um filho para adoção não é sinal de rejeição, mas de responsabilidade. Muitas vivem em condições de vulnerabilidade, sem apoio do parceiro ou da família, e veem na adoção a esperança de uma vida melhor para seus filhos. Essas mães confiam no Poder Judiciário para garantir que a nova família será capaz de proporcionar o que, naquele momento, elas não podem oferecer. Em algumas situações, elas chegam a escrever cartas para que o filho possa ler um dia, explicando seus motivos e seus votos para o futuro. Essas cartas são encaminhadas à família adotante, e uma cópia fica no processo para ser acessada pelo filho um dia, caso ele procure.
No Brasil, a idealização da maternidade ainda é uma pressão social que silencia essas mulheres. O “mito do amor materno” coloca a figura da mãe como alguém que jamais deveria considerar a adoção, ignorando o sofrimento envolvido na entrega de um filho. O julgamento social, muitas vezes, torna-se autocensura, levando essas mulheres a se isolarem em um luto silencioso. Mesmo nos hospitais, algumas mães enfrentam olhares de reprovação e julgamentos.
A Resolução 485 do CNJ representa um avanço significativo para essa realidade. O acompanhamento contínuo oferecido pela nova regra permite às gestantes encontrar suporte em sua escolha, assegurando que esse processo seja feito sem constrangimentos. Em Mossoró, a 12ª Promotoria da Infância e Juventude é responsável por acolher os bebês destinados à adoção. Nos primeiros dez dias após o nascimento, a mãe tem a oportunidade de reconsiderar sua decisão, enquanto voluntárias prestam assistência às crianças na maternidade. Após essa etapa, o bebê é inserido no sistema de adoção, encontrando famílias que muitas vezes aguardam por anos para receber uma criança.
O Projeto Acolher, em conjunto com essas novas diretrizes, humaniza o processo de adoção, assegurando que mães e filhos encontrem caminhos para o amor e o acolhimento que desejam, mas não podem vivenciar juntos. Para famílias como a de Vanessa e Carlos, a adoção é mais que uma escolha; é a concretização de um amor construído com dedicação, paciência e apoio. E, para G. L., o fato de não ter “nascido da barriga da mãe” é apenas um detalhe em uma história onde o amor e o acolhimento são protagonistas.
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