Nadjhalinny Teixeira tem 37 anos. Ela teve sua vida virada do avesso há dois anos quando sofreu um grave acidente de moto que a deixou sem o movimento da perna esquerda. Durante quase um ano, ela ficou sem andar. Foi com o auxílio de muletas e sem conseguir esticar a perna que Nadjhalinny chegou à Escola Dolores do Carmo Rebouças, localizada no Bairro Aeroporto, numa área conhecida como Macarrão. Nas noites de segunda, quarta e sexta-feira, a escola abriga o projeto Camangula, liderado pelo instrutor Dhalsim, cujo verdadeiro nome é Thalison Rodrigues. Dhalsim oferece aulas gratuitas de capoeira para crianças da comunidade, proporcionando esporte, lazer e disciplina.
Nadjhalinny foi inicialmente levada ao projeto Camangula para acompanhar sua sobrinha, Júlia Sophia, mas logo se viu envolvida pela prática da capoeira. Aos poucos, começou a fazer alongamentos e, com o tempo, se dedicou inteiramente ao esporte. A capoeira, junto com a fisioterapia, tornou-se uma terapia integrativa em sua vida, ajudando na sua recuperação. Já ativa no movimento escoteiro há muitos anos, Nadjhalinny encontrou na capoeira uma nova paixão, além do amor por carros antigos, especialmente seu fusca, que lhe rendeu o apelido de “Fusquinha”.
Dhalsim, o instrutor que ganhou seu apelido inspirado no personagem do jogo Street Fighter, viu em Nadjhalinny uma força semelhante à de um fusca: persistente e cativante. Ele explica que ela chegou ao projeto como um fusca, pedindo passagem e rapidamente conquistando todos ao seu redor, especialmente as crianças.
O projeto Camangula já está em funcionamento há 12 anos, e Dhalsim compartilha como se deu a origem e o impacto dele. Ele explica que a iniciativa surgiu da necessidade de oferecer às crianças da comunidade do Aeroporto 2 uma opção de cultura, lazer e esporte. “Aqui no Aeroporto 2 não tinha nada. Então, junto com as pessoas que estavam ao meu lado, consegui trazer esse projeto para a comunidade. E hoje, já está com 12 anos de trabalho desenvolvido aqui na cidade.”
O instrutor relembra como conheceu Nadjhalinny, ou melhor, Fusquinha: “Eu a conheci muito tempo atrás, já há mais de 20 anos, através do escotismo. Há cerca de dois anos, descobri que ela sofreu um acidente. As sobrinhas dela, incluindo a Sol, nossa aluna, vieram praticar capoeira aqui, e ela veio junto, ainda usando muletas. Indiquei a capoeira como parte da terapia dela. No momento, ela até reclamou, disse que não ia conseguir, mas eu disse que ela conseguia porque ela é forte. A capoeira veio ajudando ela junto com a fisioterapia. Coisas que ela não fazia, hoje ela faz, como dar estrelinha, fazer queda de quadro, movimentações. É bem emocionante.”
Sobre os benefícios da capoeira, Dhalsim destaca que ela oferece muito mais do que apenas atividade física: “A capoeira traz cultura, lazer, disciplina, educação, dignidade. Todo mês, procuro ir nas escolas de cada aluno para saber como está a disciplina deles, como estão em casa. A capoeira mobiliza todo o corpo, trabalha a parte corporal e desenvolve muito. Fico muito feliz em ver que a capoeira, na cidade de Mossoró, está tomando uma proporção incrível, grandiosa mesmo.”
O projeto Camangula, além de transformar a vida de crianças e jovens, também se mostra um espaço inclusivo e de reabilitação, como no caso de Fusquinha, que encontrou na capoeira uma maneira de superar seus desafios físicos e emocionais.
Quando Fusquinha ouve o som do berimbau, ela se emociona. O ambiente das crianças se alongando e praticando movimentos como o martelo, a benção e a meia-lua faz seus olhos brilharem. O projeto Camangula também é inclusivo, acolhendo alunos com TDAH, TEA e outras crianças atípicas, além de estar aberto a participantes com deficiência (PCDs). Frequentemente, o projeto se alia a outras instituições para apoiar a comunidade, em colaboração com assistentes sociais que ajudam em casos de crianças carentes ou em situação de vulnerabilidade.
Nove anos antes do acidente, Nadjhalinny foi diagnosticada com fibromialgia, uma síndrome que causa dor por todo o corpo. Após o acidente e com dores na coluna, ela aprendeu a conviver com a dor. Hoje, após praticar movimentos na capoeira, ela ainda sente dores, mas sua fisioterapeuta explicou que a dor faz parte do processo de cura. Fusquinha convive com a certeza de que terá de lidar com a dor, mas está grata por ter recuperado o movimento da sua perna, mesmo que dolorida, ela ainda está lá.
Nadjhalinny compartilha o início de sua recuperação: “O maior desafio foi conseguir esticar a perna em si, né? Porque afetou o músculo gastrocnêmico, a panturrilha, e consequentemente foi a tendão e ligamento. Então a minha perna ficou dobrada, total, e eu não esticava. Foi quando eu comecei a fazer fisioterapia, logo após o acidente…”
Fusquinha explica que o que a motivou a seguir na capoeira foi a vontade de voltar a andar. Em meio aos desafios, sua gana prevaleceu. “Por pouco eu quase perdi a perna. Então, o fato de eu conseguir hoje fazer algum movimento foi graças à fisioterapia e à capoeira. E as crianças em si, né? Que ajudam muito. Deu pra perceber, né? O amor das crianças comigo.”
Durante a prática, do início ao fim, entre os alongamentos e até em meio à movimentos mais complexos, a toda hora uma criança corre para lá e para cá, mas para e abraça Fusquinha. Ela conhece todas pelo nome, ou melhor, pelo apelido que ganhou ao entrar na capoeira. É comum os capoeiristas destacarem uma característica dos iniciados para usar como pseudônimo. Muitos se adaptam ao “nome de guerra”, mas outros caem no esquecimento.
Quando perguntada como a capoeira a ajudou no processo de recuperação tanto física como emocionalmente, Fusquinha se emociona: “Nossa, você pegou agora pela emoção, viu? Porque trabalhar com criança, lidar com criança é você preparar pro futuro dela e seu também. Porque você leva pra vida toda. Aquela criança que você viu crescer ali na capoeira, pequenininha, às vezes vem no colo do pai, fica grandinha e você tá lá. Você já tá com uma certa idade, e a criança: ‘Tia Fusquinha’, lembrar de você, tem coisa melhor não, viu?”
O primeiro benefício que a capoeira proporcionou a Nadjhalinny foi físico, pois seu psicológico estava abalado. Até hoje, ela ainda luta com seu estado emocional, mas a capoeira ajudou bastante. “O emocional ajudou muito. Lado a lado com o físico, o emocional ajudou muito”, conta.
Fusquinha faz parte de clubes de fusca há muitos anos, desde sempre gostou de carros antigos. Ela lembra que o primeiro automóvel da sua mãe foi um fusca. Ela até tatuou um na panturrilha, “na pele, no coração, na mente, em tudo”, contou.
O poder da sua força e resiliência vem da persistência e da crença de que os desafios que se levantam na sua frente são superáveis. Nadjhalinny reconhece que algumas adaptações foram necessárias para que ela pudesse realizar tarefas cotidianas, praticar esportes, cultivar suas paixões e concretizar seus objetivos. Ela compartilha mais sobre sua paixão pela capoeira e sobre sua recuperação: “Por mais que eu seja PCD, tenha deficiência, mas ela tá aqui comigo. Não faço muitos movimentos de chão, movimentos de salto, não sei o que fazer. Mas alguns eu faço, então pra mim isso aí já é válido muito. Então né, o meu apelido não é em vão, Fusquinha.”
Ao falar sobre o processo de reabilitação, a capoeirista relata como é ter que aprender a conviver com a dor. Ao considerar que outras pessoas também passam por situações semelhantes com a dela, deixa um conselho para quem chegar a usá-la como inspiração. “A reabilitação, como eu falei, ela é dolorida. Ela dói, dói, dói. Ela deixa você debilitado, deixa você de cama, afeta o psicológico, mas se você não der o primeiro passo, você vai só definhar, vai só piorar. Você não vai ter uma vida saudável, não ter uma perspectiva de vida. Então se você não procurar um esporte, uma terapia ocupacional, você só tende a piorar.”
Por falar em inspiração, Nadjhalinny compartilha que não acreditava muito nisso, até perceber que sua história poderia sim ajudar outras pessoas. “Ajuda porque pessoas vêm falar pra mim. Eu nunca acreditei muito nisso, em se espelhar e tal. Mas pessoas já vieram falar pra mim que eu sou inspiração, que eu sou guerreira…” Neste momento, enquanto fala, a voz embarga e ela se emociona. Fusquinha sabe bem o que é dor, sabe bem o que é luta e principalmente sobre o que é superação. Isso não significa que o ensinamento precise necessariamente perpassar pela dor, mas histórias como essa não podem deixar de transmitir uma centelha de esperança e resiliência para quem as escuta. “O emocional agora tá falando mais alto de novo. E eu só tenho a agradecer às pessoas que se inspiram em mim. Não faço pra me engrandecer, me enaltecer, não”, complementa.
A capoeira é uma manifestação cultural afro-brasileira que envolve elementos de dança, arte marcial, música, jogo e religiosidade. Essa efusão de sentidos consegue transpassar a vida de crianças que muitas vezes tem um acesso mais restrito à cultura, esporte e lazer, servindo de alternativa para muitos. “Impacta muito. Vou citar exemplos que eu acho que deve ser até clichê. Mas a tirar crianças da rua, crianças do mundo das drogas, por exemplo. O fato de ocupar, principalmente nesse horário, depois da escola, na hora da noite, que a gente se reúne. Então evita deles estar em esquina, com conversinha, com amizadezinha. E deixa eles ocupados. Cansados, chegam em casa, vão deitar e dormir, acabou. Então isso aí, só tira eles da rua, e o dia tá em atividade, de noite tá em atividade. Outra atividade, né. Então, acho que isso aí impacta bastante em qualquer comunidade, seja ela carente ou não”, apontou Nadjhalinny.
Ao vislumbrar o futuro, selecionar objetivos e pensar em sonhos, Fusquinha conta que seu sonho é igual ao de todos os iniciados na capoeira, seja ele praticante há dez dias ou há dez anos, que é o de se tornar mestre na capoeira. Dentro do esporte existem algumas divisões, você começa como aluno, depois pode virar instrutor, formado, monitor, professor, e o mais alto estágio é o de mestre. “Eu me imagino chegando lá com essa história, né? Com essa história de vida do acidente, tal, reabilitação, capoeira, tal. E tá lá: Mestre, mestre Fusquinha.”
Ao relembrar tudo que aconteceu no fatídico dia do acidente, Nadjhalinny compartilha detalhes do momento que mudou sua vida e a de sua companheira, Heloísa Viana: “Foi no prolongamento da principal da Rio Branco, a principal que vai dar no PA do BH. Um rapaz invadiu a preferencial, não parou, moto com moto, e na hora do impacto, eu apaguei, desmaiei na hora. Minha companheira vinha comigo atrás na moto, como garupa, ela voou. Eu só lembro dessa cena, ela voando aqui atrás e não vi mais nada. Quando voltei a mim, estávamos entrando no hospital, e não imaginava que fosse algo tão grave, achei que fosse uma pancadinha. Minha companheira rompeu os três ligamentos do joelho direito, passou por cirurgia também, e nossa reabilitação foi pesada. Compartilhamos consultas, remédios, médicos. Acompanhei a cirurgia dela, e ela acompanhou a minha.”
Fusquinha expressa sua gratidão à mãe e à sogra, que as apoiaram durante todo o processo de recuperação. Hoje, quando precisa de ajuda, é Heloísa quem está ao seu lado. Emocionada, com os olhos marejando, ela suspira fundo: “Cara, eu arrumei uma parceira e tanto, viu? Pra tudo na vida. É isso.”
A história de Nadjhalinny, ou melhor, Fusquinha, não deixa de ser um exemplo de superação e resiliência. Apesar da dor, das dificuldades e da posterior superação, a força de uma mulher que não desistiu de si, nem da vida e nem dos seus sonhos, inspira a cada um que fica sabendo da sua história. A capoeira não foi transformadora apenas para o corpo, mas também proporcionou um suporte emocional inestimável, permitindo-lhe transformar desafios em forças e vencer os obstáculos através de muita garra, luta e gingado.
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