Quando um vídeo de “1 treinador vs 30 gordos” viralizou recentemente nas redes sociais, o que poderia ter levantado um debate sério e pautado na ciência, escancarou questões muito mais profundas: estigmas e preconceitos em torno da obesidade, estagnação nas políticas públicas para tratar a doença e, principalmente, como a condição ainda é vista pela população simplesmente como “falha moral”.
O vídeo foi amplamente divulgado, mas, curiosamente, a maioria dos comentários não expressou indignação. Pelo contrário: reforçaram estereótipos sobre pessoas gordas ou com obesidade. Diante da repercussão, a cena se transformou em meme, foi compartilhada fora de contexto inúmeras vezes e, claro, virou “trend”, sendo utilizada até mesmo por empresas e marcas em paródias.
O episódio poderia ter servido como uma oportunidade para ampliar o debate sobre um problema crescente no Brasil, onde cerca de um a cada três brasileiros (31%) vive com obesidade. Além disso, entre 40% e 50% da população adulta não pratica atividade física com a frequência e intensidade recomendadas. Os dados são do Atlas Mundial da Obesidade 2025, da Federação Mundial da Obesidade, lançado no início do ano, e apontam que esse índice tende a crescer nos próximos cinco anos.
Quando se trata de crianças e adolescentes, a situação também é alarmante: uma em cada cinco está acima do peso, o que representa cerca de 391 milhões de indivíduos no mundo. Desses, quase metade (188 milhões) já vive com obesidade. Pela primeira vez na história, o excesso de peso grave superou a desnutrição como a principal forma de má nutrição infantil. Os números são do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), que alerta para o risco de adoecimento precoce.
Em Mossoró, a história ganhou mais um capítulo quando um profissional de saúde publicou nas redes sociais um vídeo considerado ofensivo às pessoas gordas. Para muitos, esse tipo de exposição só reforça uma ideia antiga e cruel: a de que obesidade seria, essencialmente, falta de força de vontade.
Esse olhar, que reduz uma condição complexa a um julgamento moral, continua alimentando preconceito e culpabilização individual, o que não contribui para o tratamento e muito menos para o enfrentamento da doença, seus fatores e consequências na população. A repercussão revela o quanto o debate público ainda está distante do que a ciência já reconhece há anos: obesidade não é preguiça, não é desleixo, muito menos escolha.
“Não tem tanto tempo que a obesidade é reconhecida como doença”, explica a médica Beatriz Luande, pós-doutoranda em Nutrologia. “Na faculdade, a maioria dos médicos ainda não recebe uma formação que trate a obesidade como doença crônica, com base biológica e genética. Essa visão simplista, de que basta fechar a boca ou ir para a academia, ainda é muito forte, inclusive entre profissionais de saúde.”
Sintomas invisíveis
Segundo Luande, a ciência já mostrou que o corpo de uma pessoa com obesidade funciona de forma diferente. “Um dos sintomas é sentir mais fome. Isso acontece por uma desregulação hormonal nos mecanismos de fome e saciedade. Outro sintoma muito comum é o food noise: pensamentos intrusivos sobre comida, que podem ocupar o dia inteiro do paciente. Isso interfere no rendimento, na concentração, na vida social.”
Ou seja, não se trata de uma simples “falta de disciplina”, como apontado pela maioria das pessoas leigas acerca do tema, mas de alterações fisiológicas que tornam o processo de emagrecimento muito mais difícil. “É como dizer para alguém gripado que é só não ter febre”, compara a médica.
O peso do preconceito
Além das barreiras biológicas, há o peso simbólico. Pessoas com obesidade não enfrentam apenas os desafios de tratar a doença, mas também o estigma constante. E até quando procuram ajuda são alvo de julgamentos.
“Recebemos relatos de pacientes que, ao iniciar o uso de medicação, escutam críticas como ‘assim é fácil emagrecer’. Isso desvaloriza todo o esforço daquela pessoa que decidiu cuidar da saúde, procurar um médico, mudar a rotina. O preconceito está em todos os lugares: no trabalho, na família, entre amigos.”
Uma doença crônica, não um desvio de caráter
Para a médica, é fundamental comparar a obesidade a outras doenças crônicas, como hipertensão ou diabetes. “Se um paciente hipertenso interrompe a medicação, a pressão sobe de novo. Se um diabético para de se tratar, a glicemia volta a descontrolar. Com a obesidade é a mesma lógica. Mas quando se fala em tratamento contínuo, muita gente reage com preconceito.”
Estudos apontam que apenas uma pequena parcela das pessoas com obesidade consegue resultados expressivos apenas com dieta e atividade física. “Cerca de 3%. A grande maioria precisa de acompanhamento médico, psicológico e, muitas vezes, de tratamento medicamentoso. Isso não é comodismo, é ciência.”
O desafio do acesso
No Brasil, o tratamento ainda enfrenta outro obstáculo: o custo. “Nenhuma das medicações aprovadas para obesidade está disponível no SUS. Há comprimidos que custam cerca de 30 reais, mas os mais modernos podem chegar a R$ 1.700 por mês. É um abismo enorme, que reforça desigualdades no acesso à saúde”, alerta Luande.
Recentemente, o senador Nelsinho Trad (PSD-MS) defendeu a incorporação, pelo SUS (Sistema Único de Saúde), das chamadas canetas emagrecedoras; que contém os medicamentos semaglutida e tirzepatida. Decisão contrária do CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde), anunciada em agosto, sob o argumento do elevado custo dos remédios, gerou polêmica. A OMS (Organização Mundial de Saúde) já incluiu os fármacos na sua lista de medicamentos essenciais; e o projeto do deputado Damião Feliciano (União-PB), em análise na Câmara dos Deputados, obriga a inclusão de ambos no SUS (PL 2264/2024) para tratamento da obesidade.
Enquanto vídeos ofensivos circulam e viram piada, milhares de pessoas lidam diariamente com uma condição crônica que exige acompanhamento de longo prazo, paciência e suporte. O que se faz urgente diante de tais desserviços na opinião pública é tirar a obesidade do campo da moralidade e trazer para onde ela de fato pertence: o campo da saúde.



















































