O ano de 2023 pode ter sido marcado por uma crise no abastecimento de água de Mossoró. Uma crise que foi resultado de um somatório de acasos e também de decisões técnicas de décadas atrás.
Na conta do acaso – poços importantes quebrados, além da depredação e roubo de fiação. A expansão dos limites da cidade tem se tornado um desafio, e até a manutenção programada de poços é complexa e demanda muito mais tempo do que em outras cidades do estado.
Para quem mora no semiárido aprender a conviver com a seca é questão de sobrevivência. O mesmo pode ser dito sobre quem vive em Mossoró em relação ao abastecimento de água. Na maioria das cidades potiguares o normal é chegar água 24 horas do dia, todos os dias.
Mas alguns bairros da segunda maior cidade do estado – o normal é o rodízio. Moradores sabem que dia a água vai chegar na torneira. Isso gera adaptações inimagináveis para quem mora fora da cidade.
Casas com dois reservatórios, e bombas para poder jogar água que chega sem pressão para armazenar o recurso tão essencial para a vida. Isso sem falar da rede de apoio. Famílias que vão lavar roupa na casa de um parente por que aquele bairro é mais bem abastecido. Todos na cidade já viram ou já contrataram carros pipa na cidade abastecendo condomínios e casas nos mais diversos bairros.
Água mole, vida dura…
A cidade de Mossoró hoje é atendida pela Companhia de Águas e Esgoto do Rio Grande do Norte (Caern) que produz cerca de 22 milhões m³ de água por ano. Em uma situação normal, são 19 poços produzindo sem parar. E olha que isso representa 70% do volume de consumo atual da cidade, outros 30% são águas que vem da Adutora Jerônimo Rosado.
A solução para melhorar o abastecimento da cidade poderia ser simplesmente: furar novos poços, mas isso é bem mais complexo do que se imagina. A Caern anunciou no meio do ano que iria construir mais dois poços na cidade. O primeiro tem contrato assinado, e ordem de serviço, bombas compradas, e deve ficar pronto em dezembro. O segundo vai começar a ser feito logo após o primeiro ficar pronto.
Mas diferente de outras cidades, a retirada de água do solo mossoroense é uma operação quase de uma petroleira. A água em Natal pode ser encontrada em poços de 400 metros de profundidade. Em Mossoró, este poço deve chegar perto de 1 quilômetro de profundidade. São águas com características bem distintas não só na questão da composição química.
“Não dá para comparar a complexidade da operação na captação de água de Mossoró com nenhuma outra cidade do Estado. Aqui tudo é muito específico, e demanda mais tempo. A manutenção de um poço em Natal pode ser feita em 2 horas, aqui levamos 2 dias”, exemplificou o atual diretor da Caern na cidade, José Celino de Melo da Silva Júnior.
A água da bacia mossoroense é de alta pressão, quente e digamos pesada. Isso faz com que os canos que fazem o poço não sejam encontrados no mercado nacional – tudo é feito sob encomenda. A bomba usada num poço na cidade é completamente diferente das usadas em Natal por exemplo. Elas são importadas e vem com uma super proteção térmica. A água retirada do poço normalmente é usada para resfriar o equipamento, mas a temperatura da água dos poços de Mossoró torna isso complexo.
Até equipamentos de construção pesado como guindastes são necessários para trabalhar na bomba que pode pesar mais de uma tonelada. A equipe de manutenção em Natal que pode ter 4 pessoas, mas tem 12 funcionários em Mossoró.
Solução a médio prazo: Adutora Apodi-Mossoró
Um investimento importante é começar a depender cada vez menos da água no subsolo da região. O Governo do Estado anunciou a conclusão do chamado Sistema Adutor Apodi-Mossoró. Segundo o anúncio, aproximadamente 60 mil famílias de Mossoró e Governador Dix-Sept Rosado serão beneficiadas. O sistema é composto por sete poços que vão tirar água do solo de Apodi e enviar para Mossoró.
Em Apodi, as águas podem ser encontradas em profundidades menores e também com uma qualidade maior. Serão cerca de R$ 82 milhões investidos na primeira etapa do projeto. A obra inclui a implantação de 4 km de adutoras internas para interligar os reservatórios nas redes existentes. Vai ser criado um sistema como um anel circulando a cidade, esta água que vem de Apodi vai poder facilmente ser direcionado para qualquer região.
Ainda tem água no subsolo?
Segundo o Instituto de Gestão das Águas (Igarn), a disponibilidade de retirada de água do aquífero Açu Confinado, de onde a Caern retira a água para abastecer Mossoró, é de 8.818.719 m³/ano. Isso quer dizer que a Companhia pode ampliar em no máximo 40% a atual produção. E isso já ligou o sinal de alerta para o abastecimento da cidade nos próximos 30 anos.
Com o aumento da população, e a retirada de um bem limitado como estas reservas do solo, como fica o futuro do abastecimento da cidade? Para a Caern, não resta dúvidas, o futuro está nas águas de superfície. A empresa já tem plano para distribuir na cidade águas de reservatórios como a Barragem de Umari, em Upanema.
Especialistas que pediram para se manter em anonimato revelam outro desafio: ainda temos realmente uma margem segura para retirada de mais água do subsolo? Alguém desavisado pode imaginar que a Caern usa praticamente sozinha a reserva hídrica do solo, mas muitos técnicos acreditam o contrário – “quem menos usa essas águas é a Caern”. As produções de frutas, de sal, de petróleo, e outras indústrias da região utilizam muita água.
Petróleo: A quantidade de água utilizada pelas refinarias depende dos processos envolvidos. O petróleo bruto consume de 0,44 e 0,47 barris de água por barril do produto. A gasolina é o maior consumidor de água com 0,60 a 0,71 galão de água por galão de gasolina. Pela produção de petróleo aqui no estado – a utilização de água nesta indústria de forma direta pode passar dos 2.000.000 m³/ano.
Um engenheiro que trabalha no ramo, e presta serviço a empresas exportadoras de frutas, disse que este ano já foi contratado para fazer 10 poços de água em Mossoró. Vale lembrar que a Caern abastece 70% da cidade com apenas 19 poços.
A pergunta que fica é, qual a real capacidade dos governos estaduais e municipais em fiscalizar a abertura e uso de poços em propriedades privadas? Realmente sabemos quanto de água para consumo ainda temos no aquífero Mossoró?
Falta Plano de gestão
O Rio Grande do Norte deve receber até o final de 2025 as primeiras águas do Rio São Francisco, que deve entrar no estado justamente pela Bacia Apodi-Mossoró. Mas esta água vai resolver quais problemas? Para o professor Jorge Pinto Filho, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Apodi-Mossoró, isso vai depender do plano de gestão, que ainda não existe.
O documento deve determinar o que a água da bacia deve priorizar, em caso de escassez o que deve ser cortado, e até mesmo quais obras de segurança hídrica são mais urgentes. Hoje a Bacia Apodi-Mossoró engloba 52 cidades que juntas tem 800 mil habitantes.
“O plano vai favorecer uma melhor gestão das águas, que é melhor se for democrática, participativa e eficiente”, afirma o professor Jorge Pinto.
Quando perguntado sobre o que falta para uma melhor distribuição deste recurso tão essencial, o presidente do Comitê é categórico: “faltam recursos, capacidade de investimento”.
E uma das alternativas é uma medida que vem gerando polêmica: a cobrança pela exploração e uso da água bruta. O projeto de lei está na Assembleia Legislativa e foi defendido pelo secretário de recursos hídricos: “Não é uma taxa, não é uma tarifa e muito menos um imposto. É um preço público que incide sobre um bem público. Alguns bens são tão preciosos que tem uma valoração econômica para a sua proteção.”, disse Paulo Varella.
O dinheiro recolhido pela cobrança deve obrigatoriamente ser investido na própria bacia explorada. Isso significa que com o início da cobrança haveria recursos para obras na região, como a que a Caern prevê para utilização de águas superficiais para o abastecimento de Mossoró.
Justamente a cobrança pela água bruta foi o motor de investimentos em obras de segurança hídrica nos nossos vizinhos Ceará e Paraíba. O Ceará já cobra pela água bruta desde 1996. Na Paraíba isso acontece desde 2016.
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